A intuição na clínica de Françoise Dolto – Cosmopolita
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A intuição na clínica de Françoise Dolto

Desde seu nascimento com Freud, a história do movimento psicanalítico foi marcada por conflitos. No cenário francês, a ruptura ocorrida na Sociedade Psicanalítica de Paris, em 1953, foi definida, principalmente, pela cisão de duas referências importantes: Françoise Dolto e Jacques Lacan. Uma comissão da Sociedade, que investigou as práticas desses dois psicanalistas, afirmou que Dolto era uma analista com “intuição demais” provocando, assim, uma transferência selvagem nos pacientes e alunos, devendo, portanto, manter-se afastada dos jovens.

Além de ter intuição demais, era sugerida frequentemente a questão de sua “pouca formação teórica”. De fato, em vários de seus textos Dolto demonstrava “não entender o que se passava na sessão”, muitas vezes ficava em silêncio e não compreendia o sentido da fala ou expressão do paciente. Em “O caso Dominique”, por exemplo, ela sentia que o paciente falava para si próprio, e, mesmo quando parecia que Dominique se comunicava com ela, Dolto não conseguia encontrar um sentido para as suas palavras. Ela disse não haver intercâmbio entre eles (DOLTO, 2010, p.47).

Em outro relato, Nasio transmitiu sua experiência de participar dos atendimentos do Ambulatório de Dolto na rua Cujas, em Paris, onde ela se propôs a receber analistas interessados em sua prática e em aprender a clínica com crianças. Segundo Nasio, esse ambulatório era um lugar vivo no qual Dolto questionava-se abertamente e interrogava os analistas participantes. Nasio cita o caso da paciente Aícha, que ela atendeu por dois anos consecutivos. Em todas as sessões, a paciente chegava chorando, chorava ininterruptamente e ia embora chorando. Deitada no chão, ela gritava e batia a cabeça. Resignada, um dia, Dolto confessou à paciente: “não sei mais o que te dizer para te ajudar…” e depois pediu para os analistas presentes dizerem para Aícha palavras que pudessem fazer cessar seu sofrimento. (NASIO, 1995, p. 254).

Talvez essa aparência de falta de teoria e a aposta na intuição, possa trazer um estranhamento para muitos psicanalistas. Na França, Dolto era considerada “amalucada”, como menciona em sua autobiografia (DOLTO, 1989 p. 113). Porém, esses relatos nos mostram que “Dolto é impressionante não porque ela muito sabe, mas, pelo contrário, porque atua com firmeza na área do não saber, justamente por saber que do assombro e da ignorância não se escapa” (PIRES, 2023 p. 66). Nesse sentido, Fendrik comentou que, no início da prática clínica de Dolto, Sophie Morgenstern pediu para ela somente escutar as crianças, sem dizer nada. Era meia hora escutando as crianças falarem, observando-as, aprendendo o ofício de escutar. Mais tarde, Dolto afirma em sua Autobiografia que ser psicanalista é anotar o máximo possível (DOLTO, 1989 p. 152). Assim, quando não se sabe o que o paciente está querendo comunicar, podemos anotar e retomar, para suspender o sentido e analisar, no depois, a repetição. Dolto atendeu, no hospital Trousseau, de dez a doze crianças por dia durante quarenta anos, anotando e retomando sempre suas anotações.

Esse reconhecimento do não saber e da criatividade, é marca da clínica de Françoise Dolto. Por exemplo, no “Seminário de psicanálise de crianças”, Dolto disse que o analista deve “fazer com que a criança represente o que está dizendo por um meio que não seja a palavra” (DOLTO, 2013 p. 18) e citou o caso de uma paciente que recebeu em terapia, e que era incapaz de desenhar e falar. Sabendo que a criança dedilhava o piano em sua casa, ela então perguntou: “Você poderia dizer isso em música?” E, assim, a paciente fez toda a sua análise tocando o piano que Françoise Dolto tinha no consultório. Como Dolto conduziu esse tratamento? Ela ouvia a criança tocar o piano e, de vez em quando, dizia o que estava sentindo a partir do que escutava. Se era verdade para a criança, ela confirmava o que Dolto dizia, quando não era, continuava a tocar e, assim, nesse momento, a intervenção de Dolto era dizer “Você está vendo, eu não entendi, mas, então, o que sua imagem queria exprimir?”

Portanto, podemos perceber em seus textos que Dolto confiava que o outro sempre quer comunicar algo, mesmo inconscientemente, e que “tudo na criança significa alguma coisa” (DOLTO, p.2007 p. 123), ou seja, em sua prática ela insiste em fazer a criança falar e não dar um significado imediato para suas elaborações. Isso é importante para não deixar a teoria dogmática, o saber dos pais ou da escola ofusquem o saber que a criança tem sobre seu sintoma, ou seja, ela aposta em uma clínica da singularidade do sujeito. Podemos observar isso em outro caso relatado no livro “A Imagem Inconsciente do Corpo”, o caso Frédéric. O paciente, que recebeu esse nome após ser adotado, durante toda a sessão desenhava a letra “A”. Ele repetiu o mesmo desenho durante vários encontros e Dolto tentava encontrar o sentido dessa repetição. Ela observavou a criança desenhando, enquanto refletia, em silêncio, o que fazer. Chegou-se a cogitar que essa letra “A” pudesse se relacionar ao nome da secretária do consultório pois já havia sido investigado e não existia ninguém na família ou outra pessoa próxima com essa inicial no nome. Porém, uma intervenção nesse sentido não teve efeito, e, depois, após sessões realizadas com a mãe adotiva, ela revela o que Dolto não sabia: a criança utilizava, quando foi adotada, o prenome Armand. Levando isso em conta, em um momento de silêncio ela observava o paciente desenhando e teve a ideia de chamá-lo como se estivesse fora da cena, sem olhá-lo, não se dirigindo para a pessoa ali presente, mas para todos os cantos da sala, para cima e para baixo, como se estivesse procurando alguém, chamando pelo nome Armand! Quando ela percebeu que, após várias chamadas, o paciente olhou nos olhos dela com intensidade, Dolto afirmou para ele: “Armand era o seu nome quando você foi adotado”.  (DOLTO, 2017, p. 36). A partir disso, ela conclui que, no momento dessa intervenção, não sabia qual seria o efeito causado, mas ela pôde insistir em uma atuação pela história do caso. Assim, ela constatou que um sintoma que o paciente vinha carregando durante essas sessões, suas dificuldades em ler e escrever, tinham ligação com essa verdade de sua história que precisava ser falada por uma voz que Dolto chamou de arcaica, voz de “maternidades”, fazendo Armand se lembrar dessa voz e, portanto, de uma parte de sua história que ele não podia esquecer.

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Assim, se Dolto é chamada muitas vezes de intuitiva ou com pouca formação teórica, ela responde a isso criando o conceito de “Imagem Inconsciente do Corpo” para transmitir que o sujeito se estrutura na interrelação subjetiva, através das relações afetivas dos cuidadores da criança: é a história relacional/emocional do sujeito, marcada pela linguagem. Dito isso, uma história peculiar pode ilustrar o sentido das críticas feitas a Dolto: um dia, na ala hospitalar, uma criança de dezoito meses mostrava grande instabilidade, à noite, por sentir falta de sua mãe. A supervisora do hospital queria que dessem uma injeção para fazer a criança dormir, mas, uma enfermeira pegou a criança e a colocou na cama, lhe dizendo que talvez ela sentisse falta de seus pais, mas lhe explicou que os pais vão para casa à noite, e logo ao amanhecer a mãe dela iria voltar. Com essas palavras, a criança adormeceu. A supervisora disse: “Uma injeção teria resolvido da mesma forma”. Parece mais fácil resolver o problema com uma injeção, mas essa solução é realizada em prol da “Causa das Crianças?” Além desse ser o título de um livro de Françoise Dolto, ela trabalhou na “Causa das Crianças” com muita energia, fazendo a transmissão da psicanálise com crianças em programas de T.V. e elaborando programas de rádio, popularizando os saberes produzidos por essa prática, trazendo reflexões importantes para o cuidado com as crianças, e lutando contra qualquer discurso que fizesse com que a criança fosse silenciada. A obra psicanalítica escrita por Françoise Dolto está composta por quase 40 volumes e documentos ainda não publicados.

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