FREUD COM JOYCE: ARTICULAÇÃO SIGNIFICANTE + LÓGICA DO GOZO  – Cosmopolita
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FREUD COM JOYCE: ARTICULAÇÃO SIGNIFICANTE + LÓGICA DO GOZO 

Em razão da relevância de Além do Princípio do Prazer para os desdobramentos da psicanálise após a conceituação da pulsão de morte, a elaboração teórica de Freud divide-se em um antes e um depois da publicação deste escrito.  O ensino de Lacan também pode ser apreendido em pelo menos dois  momentos que se diferenciam, sobretudo, pela prevalência de pontos de vista distintos em relação a questões cruciais para a teoria psicanalítica. 

O ponto de partida freudiano é marcado por um interesse genuíno pela especificidade do funcionamento simbólico. A jornada de Freud, incansável e inédita, visou ultrapassar a consideração puramente imaginária dos fenômenos psíquicos. Nesse percurso, ele topou com fragmentos do real, os quais, a partir da articulação com a noção de automatismo de repetição, acabaram por conduzi-lo ao além do princípio do prazer. Na teoria freudiana não há, portanto, apenas articulação significante. Esse real com o qual Freud se deparou lhe serviu para continuar sustentando a tese do descentramento do sujeito em relação ao eu, quando a novidade do funcionamento simbólico ameaçava ser diluída no mar das exigências impostas pela lógica imaginária da correspondência dual. 

Há também primazia do simbólico no início do ensino de Lacan, necessária para depurar a teoria freudiana de seus excessos imaginários. Somente depois noções e conceitos como gozo, objeto a, ex-sistência e sinthoma foram revestidos de um valor inestimável por permitirem uma certa apreensão do real, registro cuja teorização se apresentou, a partir do Seminário X – A angústia, como um imperativo para Lacan. Novidades teóricas e clínicas foram introduzidas na década de 60 e complexificadas nos anos 70, quando o recurso ao nó borromeano serviu para elucidar uma especificidade presente no funcionamento psíquico de Joyce que muito interessou a Lacan: nomear a partir da lógica do gozo.

Um mesmo movimento é encontrado, portanto, nos percursos teóricos freudiano e lacaniano: a princípio, com vistas a uma delimitação em relação ao imaginário, há primazia do simbólico para que suas especificidades sejam enfatizadas e seja possível discerni-lo do funcionamento dual; mas o movimento mesmo de evidenciar a hiância entre o imaginário e o simbólico conduz à apreensão de algo que concerne ao real. 

A emergência da noção de real como um registro que merece um estatuto tal como o imaginário e o simbólico fez com que Lacan teorizasse algumas novidades. Mas isso não é inconciliável com a lógica da articulação significante. Não sem razões, o nó borromeano, pivô do segundo classicismo lacaniano, se faz com três círculos equivalentes constituídos de algo que se repete nos três1. Por isso, manter viva a tese da primazia do significante ao lado das novidades do segundo Lacan é fazer valer a característica democrática do nó borromeano. Advoga-se, por conseguinte, em favor da ideia de manter viva a importância de toda a obra lacaniana, sem privilégio de um ou outro momento.

Na perspectiva edípica prevalece a relevância de um certo tratamento que o simbólico pode dispensar a um puro vivido. As primeiras formulações lacanianas sobre a psicose são tributárias de seu interesse por essa questão, e podem ser encontradas em O Seminário, livro III – As psicoses, assim como no escrito De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. Em ambos, o caso Schreber funciona como inspiração fundamental. Posteriormente, Lacan veio a se interessar por outro caso paradigmático: James Joyce. Ele se dispôs a extrair consequências, para a teoria psicanalítica, do modo de funcionamento psíquico de Joyce, para quem o significante é gozo.  Ao final do Seminário, livro XXIII – O sinthoma, em sua “Nota passo a passo”, Jacques-Alain Miller, nas considerações intituladas “De Schreber a Joyce”, afirma que

O texto das Memórias, e sua leitura por Lacan no Seminário III, assim como em De uma questão preliminar[…] são o pano de fundo do Sinthoma. É assim que o ‘deixar cair a relação com o corpo próprio’ […] refere-se à derrelição designada no delírio do presidente Schreber pelo liegen lassen [deixar largado], que Lacan isola como fundamental em sua psicose […] […] […] Quem, o que cai no deixar cair? Não é o puro sujeito do significante, que é insubstancial, não pesa, não está submetido à gravidade. É o sujeito no que o seu ser é alojado no objeto pequeno a. O corpo está necessariamente em jogo. (LACAN, 2007[1975-76], p.210 – grifos do autor)

No início do Seminário XXIII, Lacan afirma que “o Outro do qual se trata manifesta-se em Joyce, uma vez que ele, no final das contas, é sobrecarregado de pai”2.  Há um excesso de pai na psicose de Joyce, e isso parece contraditório com a noção de forclusão do Nome-do-pai, impregnada da ideia de uma falta de pai. No que concerne a isso, cabe uma indagação: o pai de que se trata em Joyce, caracterizado por um excesso, possui o mesmo estatuto do pai em questão na forclusão do Nome-do-pai? Talvez essa distinção deva ser articulada com a noção do gozo do pai.  Seria interessante, portanto, esclarecer o que está em questão nessa sobrecarga de pai.3

Joyce fez um uso idiossincrático da língua inglesa, caracterizado por Lacan como uma “escrita de l’elanguas4, neologismo que contempla, ao mesmo tempo, “línguas” e “elã, impulso”.  Parece que a relação de Joyce com a língua inglesa, tomada como estratégia, se refere ao tratamento, no âmbito do singular, dado à sobrecarga de pai por ele experimentada. Lacan afirma que ele

(…) escreve o inglês com refinamentos particulares que fazem com que a língua (no caso, a inglesa) seja por ele desarticulada. Não devemos achar que isso começa em Finnegans Wake. Muito antes, especialmente em Ulisses, ele tem uma forma de picar as frases que já vai nesse sentido. É verdadeiramente um processo exercido no sentido de dar à língua que ele escreve um outro uso, em todo caso um uso bem distante do comum. Isso faz parte de seu savoir-fare. (LACAN, 2007[1975-76], p.72 – grifos do autor)

Esta estratégia pode ser articulada à lógica do tudo, mas isso não. Lacan afirma que “o mas isso não é o que introduzo sob meu título desse ano como sinthoma” e evoca o fascínio exercido por São Tomás de Aquino sobre Joyce para argumentar, recorrendo a um neologismo: há o sinthoma masdiaquino (sinthome madaquin, homófono de Saint Thomas d’Aquin). Joyce babava por este sant’homem – outra homofonia com sinthome. Mas, apesar de atribuir um alto preço ao que o sant’homem designa “o esplendor do ser”, Joyce não tira muito proveito disso. É daí que ele “faz decair o sinthoma de seu masdiaquinismo”, como se ele dissesse: “babo por este sant’homem em tudo, mas nisso não5. Há sempre que ter uma brecha por onde seja possível escapar.

Logo após esta discussão, Lacan introduz a idéia de sint’home hule, neologismo que junta sint (parte de “sinthoma”) com home hule, expressão inglesa que significa governo próprio. Trata-se do sinthoma que rola, do sintoma com rodinhas que Joyce junta com o outro. Lacan diz nomear assim esses dois termos em função das duas vertentes que se ofereciam à arte de Joyce6. Parece haver aí referência à articulação significante, discursiva, que visa produzir um sentido compartilhado, e à lógica do gozo, ao uso que se faz da nomeação e a partir do qual é possível certa fruição, hipótese em consonância com o título da primeira lição do Seminário XXIII: “Do uso lógico do sinthoma ou Freud com Joyce”. Sobre esse “uso lógico do sinthoma”, Lacan esclarece tratar-se de usá-lo até atingir seu real, até se fartar7. Por que esta expressão vem seguida de “ou Freud com Joyce”? Em que essa junção pode interessar a Lacan?

Em Joyce, o significante é gozo. Descortina-se aí um outro uso que ultrapassa a dimensão do sentido. Mas isso não equivale a alçar esta saída encontrada singularmente por este sujeito ao estatuto de um ideal a ser alcançado. Pois o fato de haver outro uso possível para o significante, que não a articulação que visa produzir sentido, não elimina a condição estrutural de, no funcionamento simbólico, prevalecer a primazia do significante. Ou seja, a lógica do gozo não exclui a articulação significante; esta, antes, constitui-se como o pano de fundo sobre o qual se ergue a possibilidade de gozo para além do sentido. É possível usar o significante para gozar, sem pretender produzir significado. É possível fazer suplência à ausência do significante do Nome-do-Pai como organizador do funcionamento psíquico “normal”. Este parece ser o sentido para onde Joyce, que o deixou embasbacado como um peixe diante de uma maçã8, conduziu Lacan.

Referências Bibliográficas:

FREUD, S. (1920) Além do princípio do prazer. IN: Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1969, vol. XXII, p-11-85.

LACAN, J. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. IN: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p.537-590.

______. (1954-55) O Seminário. Livro II. O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

______.  (1955-56) O Seminário. Livro III. As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1985.

______.  (1962-63) O Seminário. Livro X. A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2005.

______. (19754-76) O Seminário. Livro XXIII. O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2007.
PS: A foto de capa é de, ADILSON DOS SANTOS (1944). “Peixe, maçã e ovo”, óleo s/ tela. 35 x 27

  1.  LACAN, 2007[1975-76], p.49. ↩︎
  2. Ibidem,  p.23. ↩︎
  3. Assunto que será objeto de artigo a ser posteriormente elaborado. ↩︎
  4. LACAN, 2007[1975-76], p.12. ↩︎
  5. Ibidem, p.15 ↩︎
  6. Ibidem, p.16. ↩︎
  7. Ibidem, p.16. ↩︎
  8. Ibidem, p.72. ↩︎

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