Que bobagem! – O inconsciente cognitivista e o psicanalítico – Cosmopolita
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Que bobagem! – O inconsciente cognitivista e o psicanalítico

“Aqueles que não nasceram e cresceram em nosso país acham difícil compreender que o pressuposto para o comércio entre nós e o outro lado baseie-se justamente no fato de que temos a mais profunda convicção de que eles não existem. Se nós abalássemos seriamente esse fundamento da nossa doutrina, então – disso estamos seguros e todos nossos livros santos o comprovam –, imediatamente, desmoronaria a parte da ponte por nós construída e estaríamos perdidos. Portanto, os viajantes podem tratar de frear a língua e não tentar pesquisar a fundo o segredo da nossa fé. Senão estarão correndo o risco de sofrer o mesmo destino que todos os hereges do nosso próprio povo.” 
Michael Ende, em “O espelho no espelho” (Tradução de Reinaldo Guarany)

No fim do ano passado, o Cosmopolita publicou dois textos meus sobre alguns pontos intocados em respostas à crítica de Natália Pasternak e Carlos Orsi (P&O) à psicanálise. Ainda há dois desses pontos para discutirmos: os argumentos de P&O sobre a diferença entre o inconsciente do cognitivismo contemporâneo e o das psicanálises; seus argumentos sobre a circularidade que encontramos nessas psicanálises, em especial no tratamento de suas hipóteses clínicas. Neste texto, tratamos do primeiro ponto, e perguntamos aos inconscientes: por que não seriam eles amigos, amantes, parentes? Novamente, como verão, o meu trabalho será o de um diplomata odiado e esperançoso.

P&O defendem que não é possível sustentar a legitimidade da concepção de Freud e freudianos sobre o inconsciente. Como P&O caracterizam essa concepção e onde identificam sua diferença com a concepção “moderna, científica” de inconsciente? Igualam a concepção mais anacrônica e pré-científica a um lugar trevoso e fantasmagórico, a um “calabouço” ou “repositório”, para onde a mente baniria desejos (ou coisas parecidas, como “pensamentos”, “motivações”, “memórias”, “culpas”, “dores”, “conteúdos”, “materiais”) inconfessáveis (ou com qualidades parecidas, como “vergonhosos”, “inomináveis”, “pérfidos”, “indizíveis”, “rejeitados”, “malditos”, “traumáticos”). Segundo eles, freudianos defendem que todos esses “prisioneiros” “influenciam” e “controlam” nossos pensamentos e ações conscientes, causando assim sintomas mentais. Igualam a concepção também a uma “mente paralela”. Já a mais moderna e científica teria surgido para acomodar as evidências de que nosso cérebro percebe e pensa mesmo quando não se dá conta disso; de que esses processos não-conscientes “influenciam nossos comportamentos e nossas decisões”. 

Fui caridoso com P&O, mas não, não ficam claras nem cada uma das concepções nem as diferenças entre elas. Por que uma metáfora (a dos prisioneiros espertos do calabouço) apenas para a psicanálise? Seria uma estratégia para desmoralizá-la? Não deu certo, metáforas são divertidas… (Lembremos que o cognitivismo surgiu com a metáfora da mente como computador. Seu inconsciente surgiu quando se entendeu que o que aparece na “tela” da mente é o resultado de inúmeros e insondados “algoritmos”.) Qual é a diferença entre a influência num lado, a dos desejos inconfessáveis, e a no outro, a dos processos não-conscientes? Qual é a natureza desses processos? Por que o inconsciente cognitivista, isso que pensa em nós sem sabermos, não é uma “mente paralela”? Ele nunca tem a ver com desejos e traumas? Então o inconsciente cognitivista é “frio e calculista” e é só ele que existe na mente humana? A influência de desejos e traumas na mente humana é sempre consciente? 

Na raiz de tanto incômodo teórico-conceptual, há um incômodo estritamente epistemológico. Vejamos. Argumentam que desejos e pensamentos esquisitos influenciam, sim, nossas ações, uma vez que nossa tendência é suprimí-los, mas que isso só acontece porque o caráter deles é primordialmente consciente. Argumentam que a concepção freudiana de repressão nada tem a ver com esse processo ordinário – e, ao menos pela pessoa que o sofre, deveras “observável”. Por quê? Porque a repressão freudiana referir-se-ia a processos “que nunca sequer notamos que existem”. 

Sinais dessa presença fantasmagórica [da repressão, dos conteúdos reprimidos] afluiriam à consciência em sonhos, lapsos de linguagem, na livre associação de ideias, na produção artística e em outras manifestações mais ou menos acidentais. 

E que motivos temos para acreditar que esteja lá? A palavra dos psicanalistas e de alguns de seus clientes: a falácia da “experiência clínica”. O que é exatamente o mesmo nível de evidências que existe a favor da hepatoscopia: gerações incontáveis de áugures e sacerdotes, de imperadores romanos, generais etruscos e chefes tribais de diversas partes do globo poderiam oferecer testemunhos brilhantes a favor da prática. 

Dizem aí, sim, que there’s no such thing as a repositório-de-desejos-vergonhosos na mente humana por não haver evidências convincentes para a realidade dessa concepção – o que é um ponto teórico-conceptual. Mas, aparentemente, o grande incômodo deles é o suposto clamor de psicanalistas para que acreditemos em sua realidade porque sim, porque é uma concepção interessante – o que é um ponto epistemológico. Esse inconsciente seria o dragão-na-garagem de Carl Sagan: psicanalistas seriam vizinhos que chegam a nós e pedem que acreditemos que há um dragão na garagem deles, mas que ele é invisível, flutua no ar, é desprovido de calor, é incorpóreo, etc.. “É claro que tem um dragão ali… por isso seu gato desapareceu semana passada…”. “É claro que esse cara tem problema com o pai dele… é inconsciente, ele não vai admitir… por isso ele falou ‘pau’ em vez de ‘pai’…”. De fato, P&O, por outro lado, admitem que há alegação de evidência: sonhos, lapsos de linguagem, etc. Freud argumentou que seu inconsciente é a melhor explicação para esses fenômenos. P&O parecem sugerir, portanto, que não, essa nem é a melhor explicação, nem uma das boas. Poderíamos nos perguntar que explicações alternativas e competitivas para fenômenos como sonhos e lapsos são ofertadas por aí, mas antes temos que enfrentar a carência de definições razoáveis de ambos os inconscientes. Ora, para avaliarmos se algo é uma boa explicação, precisamos antes saber em que consiste esse algo. 

O que Freud diz que há no inconsciente são representações (Vorstellungen) relativas a pulsões (Triebe). Pulsões são demandas que o corpo faz à mente. O corpo anula de forma automática muitas das faltas e sobras que ameaçam sua integridade – no processo de conservação e liberação da energia que ingerimos, por exemplo. Quando isso não é possível – muito tempo em jejum, por exemplo -, o corpo manda um sinal à mente, que sente algo mais ou menos ruim, e passa a um estado de busca. Com os recursos que tem, a mente busca no mundo algo para anular aquilo que no corpo ameaça sua integridade – grita para que a mãe lhe ofereça o seio, por exemplo. O grito e o seio da mãe se tornam representações relativas à pulsão da fome. Fome, sede, sono, nojo, raiva, medo, desamparo, tesão, ternura – tudo isso e muito mais é a parte afetiva da pulsão, enquanto os produtos sensoriais que aparecem em nossa mente junto com ela são suas representações. Não somente o grito e o seio, mas a música que a mãe canta, o perfume que ela usa, o movimento da boca, o “frescor” que chega ao estômago, etc. Segundo Freud, algumas dessas representações nunca foram conscientes, ou nunca voltaram ao estado consciente, enquanto outras representações voltaram ao estado consciente mas levaram aquela mente a um conflito com outras de suas pulsões, as que apareceram, então, como mais urgentes. É possível que apareça na cabeça de uma criança de, por exemplo, 3 anos, o seio da mãe como antiga solução para sua fome e desamparo, mas agora ela deve lidar com a antipatia da mãe que não quer mais amamentar, que quer que ele ou ela se torne um/a “mocinho/a” – ela deve então buscar outros arranjos para satisfazer sua fome e seu desamparo, o que inclui manter a estima dessa mãe. O que acontece, aí, é a repressão (Verdrängung): o seio da mãe tem que parar de aparecer na cabeça da criança sempre que ela tiver fome, senão ela perde a estima de seus cuidadores. Mas, em momentos de descuido, em que essa parte da mente que concilia as muitas demandas da vida, das mais às menos urgentes, das mais às menos complexas, dá uma “relaxada” (como no sono) ou está sobrecarregada (como na guerra, na doença, no cotidiano capitalista, no luto, no apaixonamento, etc.), essas representações ressurgem “das trevas” (metáforas divertidas) como consequência de uma pulsão. O inconsciente freudiano é isto: representações que levam, segundo o que aquele corpo viveu, à satisfação mais ou menos exitosa de demandas biológicas (que incluem demandas culturais, já que somos uma espécie profundamente gregária) mas que entram em conflito umas com as outras. Desejos vergonhosos… 

E o que seria o inconsciente cognitivista? Consultemos um dos principais livros de divulgação científica sobre ele, que aliás é citado por P&O. Em “Subliminar – Como o inconsciente influencia nossas vidas”, de Leonard Mlodinow, nos fornece um exemplo curioso da manifestação desse “primo rico”. Quando era universitário, toda quinta-feira por volta das 20:00 Mlodinow aguardava em casa o telefonema de sua mãe. (Não existiam celulares quando Mlodinow era universitário). Numa noite de quinta-feira, porém, ele sai para um encontro amoroso. Quem a atende 4 ou 5 vezes é sua colega de apartamento, que lhe informa repetidamente que seu filho havia saído e ainda não havia retornado. Em algum momento, a mãe acusa a colega de estar escondendo que Léozinho havia sofrido um acidente grave e encontrava-se sedado no hospital local. Por volta da meia-noite, ainda sem êxito, a mãe acusa a colega de estar escondendo nada menos que sua morte. “Pra que mentir? Eu vou acabar descobrindo”, diz ela, resignada. 

A mãe de Mlodinow havia emigrado da Polônia para os EUA ao fim da 2a Guerra Mundial. No começo da Guerra, quando tinha 16 anos, ela já havia perdido a própria mãe para um câncer abdominal depois de ter testemunhado suas dores por 1 ano. Seu pai é, então, levado de casa pelos nazistas. Ela mesma e sua irmã são levadas a um campo de concentração, ao qual sua irmã não sobrevive. Mlodinow comenta: 

Minha mãe interpretava o significado das ações a partir de um dicionário diferente daquele utilizado pela maioria de nós e com regras de gramática específicas. As interpretações se tornaram para ela automáticas, não conscientes. Assim como todos entendemos a linguagem falada sem qualquer aplicação consciente das regras de linguística, minha mãe entendia as mensagens do mundo sem qualquer consciência de que suas experiências anteriores tinham moldado suas expectativas para sempre. Ela nunca reconheceu que sua percepção fora distorcida pelo temor sempre presente de que a qualquer momento a justiça, a normalidade e a lógica deixariam de ter força ou significado. Sempre que eu mencionava esse fato, ela descartava a ideia de consultar um psicólogo e negava que seu passado tivesse qualquer efeito negativo em sua visão do presente. “Ah, é?”, eu retrucava. “Então por que nenhum dos pais dos meus amigos acusou seus colegas de apartamento de conspirar para ocultar que eles estavam mortos?” (Mlodinow, 2012).    

Seria mesmo impossível que encontrássemos um trecho como esse em um livro de psicanálise? Mlodinow fala, aí, de um conceito do cognitivismo chamado de “esquema emocional”. Trata-se de um ciclo de percepções e ações cujos (eu digitei “sujos” agora em vez de “cujos”, o que foi, claramente, um acidente) determinantes são inconscientes. Em jargão cognitivista, também são chamados de “não-declarativos” ou de “automáticos”. Mas não temos aí, em outras palavras, representações relativas a uma demanda do corpo à mente (a demanda de cuidado com os nossos, a de reclamar por nossos vínculos) as quais se encontram inconscientes, ao menos no momento em que o esquema emocional está ativo? Afinal de contas, ela “negava que seu passado tivesse qualquer efeito negativo em sua visão do presente”. Sim, ela sabe que não estão em guerra, que ninguém está doente, que vive uma vida segura de classe-média na América. Ela não é delirante, é uma senhora sensata! E pur si muove, como teria dito Galileu: e no entanto se move… O que havia vivido logo antes e durante a Guerra, o que havia chegado pelos seus sentidos e pelas suas entranhas, está em seu sistema nervoso e se move. O sentimento de desamparo traz consigo imagens de ruína vertiginosa, de morte violenta. A única saída para o desamparo, ela havia aprendido, é assentá-lo e resignar-se perante ele. 

Vejamos outros exemplos que Mlodinow dá do inconsciente cognitivista. Ele alude a experimentos que demonstram que nós seres humanos ficamos muito confiantes no momento de analisarmos nossos próprios sentimentos, mas que fazemos isso muito mal. E solta: “[Você] Poderia jurar que gosta daquele amigo por causa do senso de humor, mas talvez goste por causa do sorriso, que lembra o de sua mãe”. Sorriso da mãe? Hum… Você confia na sua médica porque ela é boa ouvinte, não porque tem diplomas. Você aceita o emprego porque traz prestígio, não porque “te tira da sua zona-de-conforto, mêo”. Julgamos alimentos descritos poeticamente como mais saborosos do que alimentos descritos genericamente. Os economistas devem reavaliar seu pressuposto de que as pessoas agem segundo seus próprios interesses, pesando os fatores relevantes de forma consciente, já que estudos demonstram que são fortemente influenciadas por “fatores irrelevantes” – “desejos e motivações inconscientes”. 

Estou ficando louco, ou não é tudo parecido com aquele exemplo deveras freudiano do bebê esfomeado? (É uma pena que num artigo acadêmico não possamos escrever coisas como “Estou ficando louco, ou…?”) Vemos aí conflitos entre pulsões mais básicas – demanda por ser cuidado, ser amado, ser alimentado por “gente” que sabe das coisas – e as mais complexas, mais culturais – demanda por ser levado a sério, o que, no horizonte, também é uma demanda por ser amado. É “feio”, “esquisito”, “patético”, etc., gostar de um amigo porque seu sorriso lembra o de sua própria mãe, confiar na sua médica porque ela é boa ouvinte, sentir um sabor especial na manteiga “clarificada orgânica das vacas mimosas criadas livres” mas não sentir o mesmo sabor especial na mesma manteiga só que descrita como “gordura do leite de Bos taurus [nome científico da vaca]”. Como não é de bom tom não ter desmamado aos 3 anos.

Cognitivistas falam de heurísticas e vieses inconscientes que ajudaram nossa espécie a perdurar. Falam de mecanismos nervosos que permaneceram inconscientes ao longo da história da espécie porque só assim puderam resolver os problemas do nosso organismo sem que este precisasse gastar tanta energia. São inconscientes porque o pensamento consciente é limitado 1e ocupa um tempo e uma energia que podem nos custar a vida (ou a boa-vida). Em parte dos casos, a atividade desses mecanismos e as representações envolvidas neles são inconscientes também porque uma parte mais recente (darwinianamente falando) da mente, a responsável por lidar com demandas mais complexas, as controla e inibe, com mais ou menos êxito. Ora, temos aí o inconsciente de Freud. 

A parte inconsciente da mente não é nem fundamentalmente biruta, dionisíaca, sádica, peluda, suada, brutal, devassa, etc., como defendem os caricaturistas de Freud, nem fundamentalmente racional, gentil, limpinha, eficiente, etc., como defendem os caricaturistas do cognitivismo. A mente inconsciente é o que é, sem juízo de valor: um algoritmo, um problem-solver, sim, mas algo que “se escoa” ou “se descarrega” pelas “vias” mais “facilitadas”, como diria Freud, algo cujas consequências por vezes podem, para a parte da mente responsável pelas “funções executivas”, parecer birutas ou obscenas.     

Mark Solms, pesquisador que faz uma ponte entre a psicanálise e as neurociências, argumenta que a parte automática ou inconsciente da mente é a que traz menos incerteza para a mente em sua busca por satisfazer uma demanda do corpo (pulsão); são as “representações” (se pudermos usar esse termo em um sentido bastante amplo) que, a experiência mostrou, resolverão o problema em questão com mestria. Mas e a mãe de Mlodinow? E os traumas de guerra, os pesadelos, etc.? Bem, com o máximo possível de mestria, de acordo com as condições que se apresentaram àquela mente. Se essas condições nos levam a dilemas, impasses e horrores, revisamos, buscamos. Repetimos.  

O mesmo Solms já contribuiu para este nosso debate sobre a diferença entre o inconsciente da psicanálise e o do cognitivismo2. Para ele, o inconsciente do cognitivismo trata dos ciclos de percepção e ação que a mente torna automáticos de modo legítimo, ou seja, que resolvem bem as demandas da vida. Já o inconsciente da psicanálise trataria dos ciclos de percepção e ação que a mente torna automáticos de modo prematuro, ou seja, quando ela ainda possui parcos recursos. Isso ocorreria quando o ego estivesse imaturo e ao mesmo tempo saturado de demandas da vida para resolver. O Complexo de Édipo, por exemplo, nada mais seria do que a descrição de uma automatização prematura. A criança experimenta demandas emocionais diversas em relação aos seus cuidadores, as quais ela não tem recursos mentais para conciliar; ou ela “arquiva” o esquema emocional que ela conseguiu desenvolver e segue a vida, aprendendo a ler e escrever, ou ela gasta toda a sua energia mental nessas demandas que, naquele momento, são intrinsecamente insolúveis. O retorno do recalcado é aquele desenho esquisito que fizemos aos 5 anos e que encontramos numa caixa da casa da nossa infância: sem proporção, sem nuances; feito apenas com giz-de-cera.          

Admiro o espírito dialógico de Solms, mas temo que isto ainda nos leve a uma dicotomia infrutífera. A psicanálise não lida apenas com o patológico. Ela também lida com o criativo, o jocoso, o sublime; também com o que “dá certo”. 

Toda diferença conceitual é artificial, no sentido de pragmática. Não reconhecemos diversos tons de branco no cotidiano do Brasil, mas para os esquimós reconhecê-los é algo útil, porque vivem na neve. Não vejo como pode ser útil uma diferença entre os inconscientes do cognitivismo e das psicanálises na Academia do século XXI. Nessa guerra cultural, pacientes e interessados em ciências da mente são os civis atordoados. Governantes: queremos paz! 

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