“Como os velhos, lembrar, e como as crianças, ser honesto”1
São raros os escritos de psicanalistas que não partam de uma retomada, de maneira mais ou menos direta, do movimento pendular que marca o compasso da relação que a sociedade estabelece com o saber psicanalítico. Isso está em Freud2, está em Lacan3 e permeia o debate contemporâneo sobre a o lugar do psicanalista diante dos dilemas de seu tempo.
De campos que convocam a psicanálise para uma composição, passando por aqueles que dela nada querem saber, até o limite de pesquisadores que parecem necessitar da psicanálise como bode expiatório para fazer valer investimentos escusos, mas robustos, em suas pesquisas, temos toda a sorte de exemplos para citar. Por outro lado, acompanhamos um crescente número de psicanalistas que constroem suas pesquisas a partir de um intenso diálogo com os campos mais diversos do conhecimento, visando, dentre outros objetivos, constituir um lugar para o saber psicanalítico nos debates contemporâneos.
Um dos frutos destes movimentos tem sido o questionamento sobre os limites de tais articulações, além de queixas oriundas tanto de psicanalistas, quanto de outros pesquisadores e articuladores sobre uma espécie de excesso exposto em falas como “Mas a psicanálise tem que falar de tudo sempre?”, ou, em tom geralmente irônico, “Olha lá, lá vem o psicanalista querendo se meter”.
Já aqui sinto a necessidade de marcar uma posição. Há que se levar em conta a diferença entre o uso da psicanálise como meio de se produzir algum saber sobre aquilo que atravessa a sociedade, e o corriqueiro encontro com psicanalistas que se propõe tudo-comentar, respondendo quaisquer chamados para o debate com toda a sorte de campos e pesquisadores. De fato, é de se estranhar que o (a) mesmo (a) psicanalista se proponha debater com trabalhadores da saúde mental, economistas e juristas, por exemplo, mas não parece interessante ser objeto de estranhamento supor a possibilidade de a psicanálise contribuir com estes e outros campos.
Isso posto, afirmo que minha proposta aqui não tem qualquer interesse em polemizar sobre o inócuo questionamento quanto à participação de psicanalistas em na vasta gama de articulações a partir da psicanálise, justamente por partir da premissa freudiana de que sem um real interesse do campo psicanalítico pelas questões de seu tempo, a psicanálise já teria deixado de existir.
Preâmbulo feito, trago dois trechos de duas apresentações ligadas à questão da formação do psicanalista que gostaria de explorar. A primeira delas foi trabalhada em um encontro realizado na Universidade Federal de Minas Gerais, em um debate que reuniu psicanalistas de outros ramos da psicanálise4, como mencionado, dentro de uma Universidade. Cito “não há instituição, formada exclusivamente por psicanalistas ou não, que dê conta da formação do analista.”
A segunda é de novembro do ano passado, retirada da apresentação de um trabalho na XXV Jornadas Intersedes do Laço Analítico / Escola de Psicanálise, Escola da qual sou membro – esta informação esta é fundamental. Cito “Pode um membro de nossa Escola resistir à Psicanálise, ou estaríamos isentos deste risco, dado nosso pertencimento e comprometimento com a Escola?” 5
O ponto que gostaria de tratar neste breve escrito que, aposto, pode ser mais bem elaborado a partir destas duas citações, diz respeito – de maneira mais abrangente – à formação do psicanalista, mas visa um ponto muito específico que é o da importância da circulação da psicanálise, a partir do tensionamento com outros campos e instituições. Sem rodeios: falo da participação dos psicanalistas na Cidade.
A hipótese que subjaz está na articulação entre a impossibilidade de reduzirmos o lócus da formação a uma instituição e o questionamento quanto à incidência de uma resistência à psicanálise operar até mesmo entre membros de uma determinada comunidade psicanalítica, é, justamente, a de que está na possibilidade de circulação um dos meios capazes de manter a psicanálise atenta aos conflitos que visa elaborar.
Esta atenção irrestrita ao conflito se alicerça na importante contribuição que Althusser dá aos campos psicanalítico e marxista, ao afirmar haver em comum entre ambos a premissa de que estas práxis só podem fazer valer suas subversões ao se situarem dentro do conflito que visam elaborar. Sobre isso, Zupancic, em seu livro recém traduzido para o português O que é sexo?, retoma esta importante contribuição para avançar na discussão sobre o lugar franqueado por uma suposta neutralidade que, sabemos, retorna, de tempos em tempos, como uma espécie de gradil capaz de nos proteger de questionamentos que, em geral, são aqueles capazes de fazer valer o lugar de campos como o psicanalítico.
Em qualquer conflito social, uma posição “neutra” é sempre e necessariamente a posição da classe dominante: ela parece “neutra” porque alcançou o status de ideologia hegemônica […] O critério de objetividade em tal caso, portanto, não é a neutralidade, mas a capacidade da teoria de ocupar um ponto de vista singular e específico dentro da situação.6
A fim de mitigar confusões desnecessárias, afirmo aqui o problema a ser elaborado: é fundamental que a psicanálise seja capaz de participar das mais diversas composições institucionais, contudo, é necessário que os psicanalistas se interessem pelos dilemas de seu tempo, buscando elaborá-los levando em conta algumas premissas básicas da psicanálise, justamente para que a invenção freudiana não se transforme em mais uma disciplina dissimulada.
Se me faço entender, exploro aqui um percurso de cuidado necessário para que a circulação e articulação, assim como é sabido ocorrer na estagnação, da psicanálise com outros campos não recaia em uma franca resistência à oferta de destinos outros para o mal-estar.
De um lado, mais óbvio, o psicanalista resiste ao não assumir uma postura interessada por aquilo que compõe seu horizonte para além da instituição à qual endereça sua formação; por outro, ao assumir para si o trabalho de articular e compor com outros campos, incorre no risco de contribuir para aquilo que Freud nomeou como uma “camada amortecedora”7 entre o real alcance da psicanálise, e os fins – previamente almejados ou não – dessas articulações.
Afora a relevância óbvia de debatermos estes pontos, gostaria apenas de sublinhar o movimento de remeter ao nosso campo, com a diversidade que lhe é própria, o problema da resistência à psicanálise e os meios possíveis de elaboração. A meu ver, torna-se viável um posicionamento um pouco menos queixoso e demandante de que os outros nos compreendam, ou, pior, que os outros parem de resistir.
Retornando, de um lado, temos aqueles psicanalistas que supõem a existência de uma psicanálise pura que seria correlata e mantenedora de uma “escuta tão pura” (sic) quanto aquela realizada estritamente em consultórios privados. A resistência, neste sentido, se daria pela negação do sujeito próprio da psicanálise, atravessado e atravessando a cultura, a história e todas as particularidades do tempo em que vive. Nesse lado teríamos uma psicanálise essencialmente autônoma, sem quaisquer necessidades de articulação e até elaboração que não se atenham exclusivamente à prática realizada em consultório e sua teorização voltada para a comunidade analítica.
Doutro lado temos analistas muito preocupados em advertir a comunidade psicanalítica do contrassenso que é supor que a psicanálise pode ocupar, e assim sustentar, um lugar de isenção diante de conflitos e dilemas que atravessam sua história e a história daqueles que buscam um tratamento a partir dela. É da lavra de alguns destes analistas (muito bem-intencionados, vale dizer) que emerge esta outra modalidade de resistência que gostaria de apresentar aqui, na medida em que, no afã de devolver à psicanálise e à sociedade aquilo que há de mais subversivo na invenção freudiana, isto é, a capacidade de desalojar qualquer tipo de separação entre o indivíduo e a sociedade, o fazem renunciando à especificidade clínica da psicanálise.
Mas qual seria, então, esta especificidade clínica da psicanálise?
Para responder a esta questão, faz-se necessário dizer que assumo clínica não como uma noção que pode ser tomada como sinônimo de tratamento. Com isso a clínica aqui tem como um de seus componentes o tratamento, associado, ainda, à formação e a participação do psicanalista no trânsito entre o saber psicanalítico e a vida cotidiana. Isso significa dizer que há algo em comum em todos estes flancos do trabalho do analista, condensados nisso que nomeei como clínica da psicanalítica.
A fim de explorar esta especificidade, articulada com a importância de almejar um lugar para a psicanálise nos debates de seu tempo, vou recorrer a dois escritos de Freud – Perspectivas futuras da terapia psicanalítica, publicada em 1910 e a Conferência 34 – Esclarecimentos, explicações e orientações, escrita por Freud em 1932.
Em 1910, à ocasião da Conferência de abertura do II Congresso Internacional de Psicanálise, Freud apresenta suas Perspectivas para o futuro da Psicanálise, abordando a questão do futuro desta atrelada ao fortalecimento de suas bases de tratamento e de pesquisa em três frentes, que nomeou: Progresso interno dividido em conhecimento analítico e de nossa técnica; Acréscimo em autoridade e Efeito geral de nosso trabalho. A justificativa de Freud para sua conferência está no entusiasmo dele próprio dada a ampliação da capacidade teórica e clínica da psicanálise, como também da “depressão pela grandeza das dificuldades que se interpõem a nossos esforços”.8
Seja neste escrito, como em outros trabalhos voltados não só para a comunidade psicanalítica, é razoável afirmar haver uma certa identidade no acento dado ao avanço quanto ao tratamento, somado a uma dedicação com o que chamou de acréscimo de autoridade em relação à sociedade, que produziria, vindo a ocorrer, um rearranjo necessário para o fortalecimento da psicanálise em suas perspectivas de inserção.
Acontece que, passado pouco mais de duas décadas, Freud retoma os caminhos escolhidos a fim de pensar sobre a posição a ser assumida por ele e seus discípulos diante da novidade que foi verificar um interesse maior da sociedade e do próprio campo científico pela psicanálise. Este é o horizonte franqueado já nas primeiras páginas de sua conferência 34 Esclarecimentos, explicações e orientações.
Aqui nos encontramos com um momento importante de nossa reflexão. Freud é de uma honestidade ímpar, pois volta seu olhar para suas escolhas, não supondo haver apenas um lado resistente. Neste movimento, retoma a escolha feita por um trabalho de fôlego em que fez “uso da psicanálise aplicada, explicando o comportamento das massas como manifestação da mesma resistência” que tinha ao tratar individualmente seus pacientes, com o intuito declarado de demonstrar que as leis que vigoram no âmbito individual são as mesmas que no coletivo.9
O escrito a que Freud se refere é o Psicologia das Massas e análise do Eu, publicado em 1921. Segundo Freud, o entusiasmo com que parte da comunidade científica tomou seu trabalho veio acompanhado de um sério problema a partir da formação do que nomeou “camada amortecedora entre a Psicanálise e seus adversários”, formada por pessoas que tomam partes da psicanálise emprestadas, “com divertidas restrições, ao mesmo tempo em que rejeitam outras”.
Aqui adentramos no último tempo de nossa reflexão, orientados pela correlação que Freud faz entre essa camada amortecedora formada por pesquisadores de campos diversos, e o fato de ter-se encontrado com uma camada análoga entre os seus discípulos. Em ambos, tem-se uma tentativa do que nomeamos popularmente como “jogar pra torcida”, que, nas palavras de Freud produz uma acalorada recepção:
Mas para a multidão deve ser muito bem-vinda uma teoria dessas, que não reconhece complicações, não introduz conceitos novos e de difícil apreensão, nada sabe de inconsciente, que elimina de um só golpe o problema da sexualidade, que pesa sobre todos nós, limitando-se à descoberta de artifícios que procuram tornar a vida mais cômoda.
Procurei não recorrer a conceitos como o de real, ou ao próprio inconsciente, justamente para que estes não pudessem servir como um gradil de proteção para o meu texto, ou como uma espécie de camada amortecedora – um anteparo para mitigar possíveis impasses com os quais poderia me deparar ao longo de meu escrito. Busquei, antes, apresentar uma reflexão capaz de contribuir com a sustentação de um horizonte de trabalho para a comunidade psicanalítica que não se baseasse na busca por uma palavra final sobre como deve trabalhar um psicanalista que se proponha compor com outros campos.
Com isso, espero ter podido construir um trabalho capaz de advertir meus colegas quanto à importância de, dentro ou fora dos consultórios, tomar a psicanálise como um campo à altura de não se supor capaz de tudo elaborar, e que, firmado este trato, não se suponha que a panaceia está logo ali, ao alcance do mercado dos conhecimentos. Aguardando apenas a última palavra, fruto de quaisquer articulações e composições que percam de vista que não há cura possível para o inconsciente.
- Em memória de Sigmund Freud, poema de W. H. Auden ↩︎
- Especialmente em Perspectivas futuras para a terapia psicanalítica (1910); As pulsões e seus destinos (1915); Caminhos da terapia psicanalítica (1919) e nas Conferências 34 Esclarecimentos, explicações e orientações e 35 Acerca de uma visão de mundo (1932). ↩︎
- Marcadamente em A situação da psicanálise e a formação do psicanalista em 1956 e A psicanálise e seu ensino (1957). ↩︎
- Ramos, aqui, faz referência ao importante trabalho de Renato Mezan O tronco e os ramos (2014), em que sustenta que os variados ramos da psicanálise, oriundos do tronco freudiano, se estabeleceram a partir de um interesse em matrizes clínicas diversas, atravessados por contextos históricos fundamentais para a compreensão dos rumos assumidos. ↩︎
- Ao me utilizar do significante formação, refiro-me exclusivamente ao endereçamento de psicanalistas a uma instituição, Escola, ou coletivo que tem como prerrogativa ofertar espaços de discussão e elaboração de textos ligados à psicanálise. ↩︎
- Zupancic, 2023, p. 13. ↩︎
- Freud, 1932/2010, p. 297. ↩︎
- FREUD, 1910/2013, p. 288. ↩︎
- Importante sublinhar aqui que a publicação desse escrito e a escolha de fazer o “Eu” figurar no título dele será alvo de importantes críticas por Lacan, já que vê nessa escolha a justificativa para importantes desvios junto à obra freudiana, por seus sucessores. Essa discussão será retomada em momento oportuno, mais especificamente, ao retomarmos a discussão lacaniana quanto aos efeitos que a invenção do Estádio do Espelho teve no interior do campo analítico, levando, segundo Lacan, “ao cerne de uma resistência teórica e técnica […] bem longe de ser percebida pelo meio do qual partimos [psicanalítico].” (LACAN, 1966a/1998, p. 71). ↩︎