Durante as reuniões do grupo de pesquisa sobre autismo e psicanálise, que ocorriam às sextas-feiras no IPEP, discutimos diversos textos sobre o tema, incluindo obras de autores contemporâneos como Marie Christine Laznik, Maria Cristina Kupfer, Eric Laurent e Jean-Claude Maleval. Em um desses encontros, um professor da educação básica que participava conosco fez uma colocação que tocou diretamente em uma desconfiança que eu mantinha em silêncio por parecer polêmica. Na ocasião, ele afirmou:
– Alex, o autismo que a psicanálise descreve não se parece com as crianças autistas que encontro em sala de aula.
Assim como ele, atuo na educação básica e concordei, destacando que muitas das crianças que estão nas escolas não apresentam retenção de seus objetos pulsionais, dificuldades no processo de socialização, questões de imutabilidade ou “rigidez cognitiva”, entre outros elementos presentes em alguns quadros do funcionamento autístico. Esse desconforto nos levou à investigação dos textos de Kanner e Asperger, além de uma análise das edições do DSM, desde a primeira até a última, onde o termo TEA (Transtorno do Espectro Autista) apareceu. Nosso objetivo era analisar quem eram e como eram descritas as crianças por Kanner e Asperger e, em seguida, compreender a evolução do autismo nas edições do DSM.
Enquanto as leituras e as pesquisas aconteciam, chegavam até mim questionamentos sobre a maneira como os planos de saúde laudavam as crianças. Tendo em vista que os planos precisam oferecer às famílias o encaminhamento para uma avaliação diagnóstica e, caso não ofereçam, devem arcar com os custos quando a avaliação é realizada em consultórios externos, começou a se estruturar dentro dos planos um sistema para avaliações, recorrendo a diferentes protocolos como: PROTEA-R, M-CHAT-R, ICA, SRS, entre outros. Porém, não havia profissionais qualificados para atender toda essa demanda, e a solução foi a contratação de profissionais sem qualificação. Num estilo “fast food” formativo, em virtude do aquecimento do mercado no setor, profissionais que não trabalhavam com autismo começaram a se “especializar” e a responder às famílias na posição de quem assina o veredito: “autismo”.
Usando os protocolos como ferramentas para a avaliação, me questiono se os especialistas investigam o que leva algumas crianças e jovens a adotarem certos comportamentos. São para efeitos de regulação? São manias? São reações repetitivas decorrentes da ansiedade vivenciada na escola ou em casa? Havia, por parte do clínico, interesse em conhecer como esses comportamentos apareceram, ou já os tomavam como algo dado a ser examinado? Em que medida o comportamento pode dizer sobre um funcionamento autístico?
Com relação aos testes realizados com as crianças em investigação, surgem outras questões: a criança se incomoda com o teste do barulho na orelha feito pelo avaliador porque é intolerante a barulho ou porque o barulho é intolerável? A dispersão em relação ao brincar se dá em função da quantidade de brinquedos dispostos no consultório ou por desinteresse? Aliás, quando perguntado aos pais se a criança possui comportamentos “bizarros” ou se age “de forma tola”, o que os protocolos entendem por tolo ou bizarro? Em que medida a compreensão de tolo ou bizarro pelo protocolo influencia na detecção do autismo? Todas essas perguntas me pareciam importantes, pois ao invés de centrar o diagnóstico no sintoma apresentado, você se debruça sobre o sujeito.
Um mesmo comportamento pode aparecer em diferentes circunstâncias e ter finalidades distintas para crianças diferentes, mas essa compreensão exige um acompanhamento junto ao paciente para diferenciar um funcionamento autístico de outros quadros, como uma neurose ou psicose, por exemplo. Por isso, quanto tempo tem levado para a avaliação de autismo? Tenho acompanhado casos que levaram de 3 a 4 sessões. Seria o suficiente?
Do consultório, a família sai com a guia para realização de terapias comportamentais, entretanto, todos os autistas precisam de intervenções desta modalidade terapêutica? Aliás, é importante ouvirmos os autistas mais velhos sobre suas memórias da infância para amadurecermos a compreensão de que nem todo autismo é sinônimo de sofrimento, nem todo autista sofre por ser autista. Há um desdobramento desse entendimento que toca na educação, uma vez que as crianças laudadas autistas saem individualmente da clínica, mas se encontram no espaço escolar. Por presumirem uma condição de sofrimento imanente ao autismo, temos assistido a exigências para que a escola se torne uma extensão do consultório terapêutico, mobilizando processos e tensões entre famílias e educadores.
Sobre o conturbado cenário abordado acima, relatarei como diagnósticos rápidos, fundamentados em uma espécie de identificação pelo comportamento, podem incorrer em possíveis equívocos.
Durante uma sessão, a criança tampa suas orelhas e me diz:
– Alex, tem que parar com esse barulho.
Eu pergunto se o barulho estava lhe incomodando e ela me responde:
– Não, mas eu sou autista e minha mãe disse que não posso ouvir barulho assim.
– E o que mais um autista faz? Questionei.
– Autista não gosta de ficar conversando muito e fica bravo.
– Você acha que eu seja autista, perguntei.
– Pergunta para a sua mãe, me respondeu.
O convívio semanal com a criança me permitiu investigar alguns de seus “sinais autistas”, como: andar na ponta dos pés, balançar as mãos (flapping) e a recusa em acatar as demandas da mãe. O andar na ponta dos pés e o flapping apareciam na criança em momentos de excitação, quando ela corria, balançava os braços, dando passos sobre as pontas. Em outras circunstâncias, este andar e o balanço das mãos se extirpavam. Tratava-se de manifestar sua excitação e alegria com os jogos, brincadeiras e compartilhar momentos com outras crianças, um traço singular, um estilo. Ao não atender a mãe e recusar acatá-la, a criança rivalizava, desafiava, a testava na maioria das vezes, diferente de não acatar uma demanda de desejo. No lacanês, diríamos: há uma alienação ao desejo do outro/Outro colocada. Essa “recusa” não era a mesma recusa que o autista manifesta em virtude de uma foraclusão do furo ou de uma alienação retida. Portanto, diria que se trata de uma neurose, cujo comportamento, em muitas circunstâncias, aparece em detrimento dos conflitos familiares vivenciados e sua dificuldade de lidar com a angústia proveniente deles.
Com o laudo em mãos, a criança se tornava, para a escola, para a família e para o plano de saúde que a avaliou, fundamentado no sistema de checklist amparado pelo DSM, uma criança autista. Muitos dos itens listados e contemplados levaram a uma avaliação que permitiu seu diagnóstico por meio do resultado com a soma total dos pontos. Por isso, considero legítima a preocupação com relação ao tempo e à transferência entre criança e o terapeuta/clínico para a emitir um diagnóstico.
A direção do trabalho com crianças autistas, psicóticas e neuróticas não é a mesma. É importante conhecer a história de cada um desses sujeitos. Aliás, a psicanálise faz uma torção na maneira como se produz um diagnóstico ao considerar a história do sujeito na causação do sintoma. Com isso, a direção do trabalho – para recordar Vivès e Orrado – é uma bricolagem que se dá um a um na relação transferencial.
Mas, o que dizer desses acontecimentos? São erros? Crimes? Despreparo? Como nomear? Minha hipótese é que o DSM foi tomado para servir como fundamento às intenções do mercado, me refiro à indústria farmacêutica altamente lucrativa, à construção de unidades privadas que oferecem terapias caríssimas, ao lobby político que deseja usar e transformar o autismo em votos e às celebridades especialistas que gozam dessa posição de saber. Não se trata de jogar o bebê com a água do banho, ou seja, de dizer que o DSM deva ser extinto, mas de compreender a conjuntura em que o DSM está inserido política e economicamente e como ele tem sido usado para finalidades de interesses altamente lucrativos. Quem se prejudica com isso? Eu arriscaria uma resposta: as crianças.
Retomemos o título: “O autista no DSM é o autista da psicanálise?”. Não é, e a psicanálise lacaniana pode ser um caminho para aprofundarmos nossa reflexão sobre essas distinções. Lacan nos ensinou que não há sujeito fora da linguagem; assim, no autismo (em Kanner e em Asperger) temos a resistência em ceder seus objetos pulsionais. Poderíamos, como propuseram Robert e Rosine Lefort, conceber o funcionamento autístico numa perspectiva estrutural (o que chamamos de quarta estrutura). Sobre a questão, transcrevo abaixo um trecho da psicanalista Bartyra Ribeiro de Castro ao ler Maleval e Laurent, que diz:
“O que sustenta a hipótese de uma estrutura autística é, sobretudo, o fato de que, em qualquer ponto do espectro, quer dizer, dos autistas considerados kannerianos, aos Aspergers, aos savants, encontram-se os elementos invariáveis: o isolamento autístico e a imutabilidade; assim como a não cessão dos objetos pulsionais para a troca social, e o retorno do gozo sobre a borda autística, o que pode lhes permitir ir ao mundo – como pseudópodes –, como fronteiras para se aventurarem ao laço social. Há três elementos que podem receber investimento libidinal por parte dos autistas, que são os objetos autísticos, os duplos e as ilhas de competência ou interesses específicos, e que dizem e do retorno do gozo sobre a borda1”.
A noção de retorno do gozo sobre a borda autística e da forma como o sujeito autista adentra a linguagem (via signo e não significante), portanto, de sua dificuldade em produzir uma cadeia significante e lidar com o registro do simbólico, nos apresenta, no curso do trabalho com as crianças autistas, a posição que o sujeito na linguagem se inscreve, na maneira como ele organiza suas defesas e na confecção da borda criada para enfrentar aquilo que é ameaçador para ele. Tudo isso permite pensar a direção de um trabalho individual, uma vez que remete à singularidade da criança e de cada bricolagem.
Recorrer aos testes de observação comportamental, acreditando que em poucas sessões possam ser fidedignos quanto à exatidão de um resultado capaz de identificar o funcionamento autístico, pode ser arriscado.
Ao priorizar uma avaliação que se dedica à observação dos comportamentos, sabendo das intenções mercadológicas que se constroem com o aumento significativo de diagnósticos, não seria alimentar a gestão neoliberal do sofrimento humano, com interesses dos mais variáveis por trás?
Uma criança com graves sintomas obsessivos ou quadro de psicose infantil pode, mimeticamente, ser interpretada como um caso de autismo. O diagnóstico de autismo exige tempo, uma equipe multidisciplinar e ética. Não se emite um laudo na solidão de um consultório e na precocidade de uma relação com o paciente. Por isso, ao contrário dos interesses que favorecem recorrer ao DSM como instrumento de capitalização a partir de suas tipificações de transtornos, deficiências ou doenças, a psicanálise se mune de outros recursos teóricos e clínicos na relação com o sujeito, dedicando sua atenção a maneira como o sujeito responde ao outro/Outro, suas defesas produzidas para lidar com um mundo caótico e invasivo e com as dimensões do Real, Simbólico e Imaginário.
A causa do autismo tem se tornado negócio de mercado, na medida em que ele compreendeu como a noção de espectro e o diagnóstico por comportamentos podem produzir sujeitos autistas, impulsionando um nicho rentável de consumo. Garantir amparo ao tratamento das crianças e de seus pais passa por retomarmos critérios mais rigorosos no que se refere à formação de terapeutas e às leituras diagnósticas.
No seio dessa conjuntura política e econômica, profissionais e famílias, diante das (im)possibilidades de lidar com o real (esse real do qual Lacan nos ensina), tornaram o autismo uma identificação significante, à qual muitas vezes é recorrida por muitos em virtude da dimensão que ocupa a abrangência da noção de espectro, buscando marcar com a linguagem aquilo que toca na sua angústia, no não-saber. Assim, a palavra “autismo” aparece como tentativa de nomeação da angústia.
- https://www.institutoespe.com.br/post/autismo-quarta-estrutura Acessado em 06 de junho de 2024 ↩︎
2 Comentário
Liliam
Muito bom o artigo . Em psicanálise consideramos o sujeito e não o diagnóstico , pois o sujeito não é seu laudo, seu diagnóstico. Parabéns pelo belíssimo trabalho.
Lucas cavalcante
Muito bom! Fiquei pensando…
Uma vez que no sujeito autista a entrada à linguagem se dá pelo signo e não pelo significante, como deve ser pensada a as intervenções, isto é, o ato do analista ?