Da Transmissão da Psicanálise ao seu Ensino – Cosmopolita
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Da Transmissão da Psicanálise ao seu Ensino

O tema da transmissão da Psicanálise e sua articulação com a formação do psicanalista
ainda é uma discussão atual nas universidades. Freud, em seus textos, sempre se mostra
preocupado em como se daria a propagação da Psicanálise pelo mundo e, consequentemente,
com a formação dos psicanalistas. Foram incansáveis as tentativas de ofertar um lugar
específico de formação.


Em seu texto A história do movimento psicanalítico (1914/1996), Freud relata suas
tentativas de iniciar o movimento de formação em 1902. De início, tenta estabelecer encontros
regulares às quartas feiras, em sua própria casa, com jovens médicos interessados na
Psicanálise. Em 1908, foi criada a Wiener Psychoanalytische Vereinigung, tornando-se a
primeira instituição de Psicanálise da história. Em sequência, em 1910, esta foi dissolvida e foi
criada a Internacionale Psychoanalytische Vereinigung, que em 1926 foi transformada na IPA.
A trajetória de Lacan é marcada por contribuições de várias áreas do conhecimento
como a Matemática, a Linguística, a Filosofia e as Artes, e avança na teoria a partir do retorno
à Freud. Assim, dá continuidade à elaboração da teoria psicanalítica a partir de seu estilo,
possibilitando o surgimento de novos conceitos teóricos. O teórico contribui imensamente com
a problemática da transmissão em Psicanálise. Psicanalista da IPA, e também crítico ao Ensino
proposto pela IPA, se preocupa também em elaborar durante toda sua trajetória, teorias acerca
dos problemas em relação à transmissão e à formação psicanalítica. Com suas questões sobre o
ensino da Psicanálise, propõem uma nova maneira de ensino e formação, retirando a Psicanálise
da ordem de aprendizado como qualquer outra disciplina e saber.


Miller em seu livro Percurso de Lacan: uma introdução (1987), expõe o pensamento
lacaniano, elucida as críticas e questões que Lacan tinha a respeito da formação da IPA e com
relação aos psicanalistas pós-freudianos com sua ortodoxia. Antes de ser excomungado, entre
1953 e 1963, seu ensino era dedicado ao retorno dos textos de Freud. Após sua saída da IPA, a
partir de 1964, até 1974, ele vai além dos textos de Freud e começa a desenvolver conceitos e
teorias próprias. Depois de 1974, como Miller nomeia, será o terceiro período do ensino de
Lacan, que se dá pela teoria do real, simbólico e imaginário.
Em 1964, o psicanalista inaugurou sua escola, École Freudienne de Paris e, com ela,
um novo estilo de transmissão. O primeiro ponto que podemos salientar é do termo usado por
Lacan: Escola. Em seu texto Ato de fundação (1964/2003), Lacan descreve, sem poupar

detalhes, como será o funcionamento da Escola e sua função na formação, separando em seções.
Ele salienta:

Os que vierem para esta Escola se comprometerão a cumprir uma tarefa sujeita a um
controle interno e externo. É-lhes assegurado, em troca, que nada será poupado para
que tudo o que eles fizerem de válido tenha a repercussão que merecer, e no lugar que
convier. (LACAN, 1964/2003, p.235).

Lacan nos lembra que só é possível transmitir o ensino da psicanálise por meio da
transferência de trabalho (LACAN, 1964/2003, p. 242). Em seguida, o autor explica a escolha
do termo Escola, compreendendo que esta não depende do ensino de uma pessoa ou de um
grupo. Sendo uma Escola Freudiana, seu objetivo é transmitir o ensino de Freud para aqueles
interessados na Psicanálise. Retornando aos textos de Freud, e indo na contramão do ensino
proposto pela IPA, Lacan funda sua própria Escola. Ao decorrer dos anos, Lacan implementa
inovações na formação psicanalítica e postula uma nova lógica de duração das sessões e sua
frequência, dando permissão às pessoas com outras formações além da Medicina. Lacan diz:
“(…) nenhum ensino fala do que é a psicanálise. Em outros lugares, e de maneira declarada,
cuida-se apenas de que ela seja conforme.” (LACAN, 1967/2003, p. 250).


Miller (2003) aponta algo importante que há entre o ensino e a transmissåo em
Psicanálise: o saber e a verdade. Relembra quando Lacan fala sobre a análise que situa a
verdade, a verdade surge a partir da experiência. Onde justamente, não há manual ou uma ordem
a ser seguida, é de uma ordem do não saber. Sendo, então, o saber a partir da experiência, a
formação do analista vai se formando pouco a pouco em seu percurso. E como Miller cita em
seu texto ̃seria estúpido que um analista negligêncie sistematicamente o que se ensina nos
institutos, mas é preciso que ele saiba que esa não é a dimensão em que ele opera. (MILLER,
2003, p.9).


Para compreendermos as ofertas atuais de como se tornar um psicanalista,
principalmente ofertas oriundas do virtual, precisamos retomar a discussão sobre o discurso
capitalista, no qual Lacan intitula como o quinto discurso. Esse discurso se diferencia dos outros
por foracluir o laço social. Lacan se refere ao capitalismo, dizendo do sucesso do discurso do
mestre, com o fato de que nunca se trabalhou tanto.


O discurso capitalista promete uma felicidade plena e um gozo sem barra — contanto
que se fixe no imperativo do trabalho também sem limites —, retomamos Alexandre Stevens
que publica um breve texto na Ornicar? Digital acerca da dimensão da formação. Ele diz de
um certo silêncio em torno dos conceitos psicanalíticos, apontando que parece ter uma certa
felicidade e satisfação ser um psicanalista sem se dar ao trabalho de se perguntar sobre o que é

a psicanálise ou como é o processo em se tornar um (STEVENS, 2001). Como o autor nos
lembra, Lacan, em 1973, apontava que não há formação do analista, mas sim formações do
inconsciente. Ou seja, a formação do analista se daria em sua própria análise. Então, como essas
novas ofertas divulgam processos de formação do psicanalista em sites e aplicativos e garantem,
na compra de um curso, oferecer um saber completo, diante da lógica da incompletude proposta
pela psicanálise? A formação do psicanalista é então, impermanente.
Miller (2018) retoma o texto Análise finita e Infinita, de Freud, e complementa com
Lacan, quando diz que a análise não vai ser uma coisa ou outra, mas sim as duas. Por mais que
a análise tenha que, em algum momento, terminar, não quer dizer que o sujeito deva abandonar
sua posição como analisante e se torne apenas psicanalista. E muito menos significa, via regra
capitalista, que ele será capaz de se tornar um profissional que gire o capital. “Portanto, se é
preciso slogans, substituamos doravante o retorno à clínica pelo retorno ao singular” (MILLER,
2018, p. 88).


Miller chama a atenção em seu livro Aposta no passe (2018), com o texto Como alguém
se torna psicanalista na orla do século XXI, justamente para o título escolhido por ele. Ao invés
de dizer “ser psicanalista”, escolhe referir-se por “devir/tornar psicanalista”. O “ser” não tem
necessidade de complementar algo, ele já é. O autor relata que o ser também convida a alguma
identificação, seja ela no tratamento ou na instituição. O autor continua, ao pontuar que “Um
psicanalista não quer semelhantes; quer apenas diferentes. Esse é o sentido da fala de Lacan:
‘Façam como eu, não me imitem.’” (MILLER, 2018, p.86).

Referências bibliográficas:
FREUD, S. A história do movimento psicanalítico (1914). In: FREUD, S. A História do
Movimento Psicanalítico, Artigos sobre a Metapsicologia e outros trabalhos (1914-1916),
Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1996. p. 18-76. (Edição Standard Brasileira das Obras Completas
de Sigmund Freud, 14).
LACAN, J. Ato de fundação (1964). In: LACAN, J. Outros escritos. Tradução Vera Ribeiro.
Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Ed., 2003. p. 235-247.
LACAN, J. Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola (1967). In:
LACAN, J. Outros escritos. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Ed.,

  1. p. 249-264.
    MILLER, J. A. Aposta no passe. Rio de Janeiro, RJ: Contra Capa, 2018. 256 p. (Coleção
    Opção Lacaniana, 14)

MILLER, J. A. Percurso de Lacan: Uma Introdução. 2 ed. Tradução Ana Lydia Santiago.
Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Ed., 1987. 220 p.
MILLER, J. A. A “formação” do analista. Opção Lacaniana. no37. Setembro de 2003.
STEVENS, A. LAS TRES DIMENSIONES DE LA FORMACION. ORNICAR? Digital,
2001, n. 155. Disponível em: https://wapol.org/ornicar/articles/155ste.htm. Acesso em: 18
set. 2022.

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