Como ler Lacan? Estilo, transmissão e ensino – Cosmopolita
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Como ler Lacan? Estilo, transmissão e ensino

Impossível, hermético, obscuro, excessivamente intelectualista ou pior; esses são alguns dos adjetivos atribuídos ao ensino e transmissão de Jacques Lacan. 

As variadas reações aos textos, aos seminários lacanianos, as formalizações, as formulações do tipo “a mulher não existe”, se encaixam, segundo Simanke (2002), em duas atitudes frequentes, por um lado, uma rejeição em bloco da produção lacaniana em nome de algum “pecado imperdoável, conceitual ou de caráter”. Por outro, uma certa “adoração ao mestre”: o discípulo que para melhor adorar o mestre opta por compreender de menos, quer dizer, “adere a doutrina sem antes compreendê-la”.

Destacaria ainda um terceiro elemento que chamamos no Brasil de lacanês: uma espécie de mimetização deliberada do estilo do francês que acaba por gerar mais confusão, afastamento e aversão.

Sobre o seu estilo e transmissão, Lacan destaca algo importante na apresentação dos Escritos, em outubro de 66: “Queremos, com o percurso de que estes textos são os marcos e com o estilo que seu endereçamento impõe, levar o leitor a uma consequência em que ele precise colocar algo de si”. Lacan propõe, de saída, a implicação daquele que o lê numa espécie de afastamento da clausura do óbvio ou de algo dado, estreitamente objetivo, exato e inequívoco. Ou seja, Lacan está declarando que seu estilo de transmissão da psicanálise não se pretende enquanto um sistema fechado e acabado, ao contrário, lacunar, não-totalizante. É como destaca Milner (1996): “as obras não-totalizantes convêm leituras não-totalizantes. (…) Sua incompletude autoriza que os tratemos de maneira parcial.”

A forma lacunar propiciada pelo estilo de Lacan é o que permite efeitos de endereçamento: a exigência de um dar de si proposto pelo próprio. O percurso de cada um faz contornos às muitas lacunas do ensino sem jamais o refechar numa mesma fórmula ou objetividade escancarada. Os diversos motivos, não necessariamente sabidos, que levam alguém ao contato com a psicanálise lacaniana, que podem ser sua própria análise, sua formação, sua prática clínica etc., numa palavra, é do desejo implicado que se trata.

Disso pensarmos nas dificuldades de se responder à questão título desse texto: como ler Lacan? Não há “A resposta” que se complete, depende do laço de endereçamento que se institui. Por exemplo, Função e Campo da fala e da linguagem, de 1953, para mim, penso ser uma leitura basilar, pois marca, entre outras coisas, uma tentativa lacaniana, ou melhor, o início de um programa de releitura da psicanálise à luz de pressupostos da linguística e do estruturalismo, colocando a linguagem no coração da teoria e prática clínica. 

Porém, bem antes de Função e Campo, Lacan já havia nos anos 30 e 40 – após sua tese de doutorado em psiquiatria defendia em 1932 – discutido uma série de outros conceitos e temas decisivos para o seu ensino, ainda que repensados ulteriormente. Por exemplo, a discussão acerca da paranoia, o estágio do espelho, uma primeira teoria do imaginário, o tempo lógico e a questão das sessões de duração variável; tudo isso é discutido antes mesmo de Lacan pronunciar seu primeiro seminário aberto, em 53.

Então, como decidir por onde começar? O começo, deveria ser linear? Não exatamente e não é bem isso que se vê com frequência. Pensando que o registro do interesse passa pelo desejo e isso carece de uma objetividade, talvez fosse interessante pensarmos que a transmissão da psicanálise lacaniana operaria melhor por transferência de trabalho: de poucos e aos poucos. Quer dizer, ainda que alguma clareza “mais ampla” surja somente com o percurso – uma clareza de percurso, como diz Milner (1996) –  esse percurso não necessariamente é o mesmo, idêntico-a-si ou linear. Isso toca no que chamamos de formação, autorização, que nunca é em Lacan formatação ou etiquetamento.

Essa palavra percurso (ultimamente bastante massacrada, inclusive) ainda me parece interessante, pois em alguma medida afasta a ideia de uma certa “formatação” ou “etiquetamento”, algo que sempre Lacan denunciou, especialmente no Seminário 17, o avesso da psicanálise. Se pensarmos o que o francês designa por discurso universitário, num dos sentidos, e a relação com essa ideia de formatação, como ele diz a “produção de sujeitos etiquetados”, diz respeito, dentre outras coisas, a uma crítica a ideia de que a formação e consequentemente a transmissão se estabeleceria por um “único formato”, o que negaria o caráter de percurso que pode se enveredar por diversos caminhos. Com isso Lacan não quer dizer que se trata de qualquer caminho, muito pelo contrário, apenas demarca a impossibilidade do único. Essa discussão é longa e não cabe avançar aqui.

Por fim, Lacan nos lembra do erro de se compreender rápido demais, do quanto a função da pressa conduz a conclusões precipitadas em relação a seu ensino. Ao passo que também a demora em (des) ler e se apropriar de momentos de conclusão ainda que provisórios denuncia também o medo da autoridade do(s) mestre(s). Quer dizer, a medida aqui também passa pela autorização de transmitir que por sua vez se enlaça com o desejo, o ideal e a lei.

Referências

LACAN, J. Escritos [1966]. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

MILNER, J. C. A obra clara: Lacan, a ciência, a filosofia [1996]. Rio de Janeiro: Zahar, 1996.

SIMANKE, R. T. Metapsicologia lacaniana: os anos de formação [2002]. São Paulo: Discurso Editorial, 2002.

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