“Cadê o adulto que estava aqui? O gato comeu” ou a disparidade adulto/criança em nossos dias – Cosmopolita
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“Cadê o adulto que estava aqui? O gato comeu” ou a disparidade adulto/criança em nossos dias

Quando perguntamos a uma criança 

o que está chateando você em sua vida? 

Precisamos estar preparados, pois

elas podem responder!  

O modo de pensar a disparidade/não disparidade subjetiva entre as posições adulto/criança carrega os contextos de cada época, mas sobretudo, o modo de como considerar a lógica desse tempo tem efeitos. É preciso avançar na direção aberta pela pergunta “do que se trata quando se trata de crianças”? Se realmente a disparidade das posições subjetivas criança e adultos implica a todos, fazer disso uma exigência é uma convocação mais intensa aos profissionais que da criança se ocupam. 

Quando entre 1895 à 1923, Sigmund Freud realiza a hipótese, que através do estudo sobre as crianças, se poderia demonstrar o caráter difuso e desorganizado da sexualidade humana, tomando a perversão como estratégia (ao necessitar de noções que já faziam parte de sistemas científicos já conhecidos), e como parâmetro descritivo dessa mesma sexualidade infantil, desenvolve em seu campo de produção teórico/clinico uma interessante pesquisa epistemológica sobre as oscilações entre aproximações e afastamentos das posições subjetivas adulto/criança (Rohenkohl, 2002).

No primeiro dos três ensaios Freud prepara o terreno: retrata pacientemente a separação de uma origem e uma ligação natural entre pulsão e objeto. Essas premissas possibilitarão não apenas a descrição de uma sexualidade infantil, mas uma explícita distinção entre sexualidade da criança e a posição sexual adulta.

Já no último dos três ensaios acompanhamos a tentativa freudiana em cultivar um maior afastamento entre ambas as posições, porém, construindo vias para uma maior porosidade entre as vivências infantis e as experiencias do adulto.

Nesse movimento entre os lugares criança e adultos, Freud descreve a constituição de dois campos que possuem zonas de interface, tanto no aparecimento das sensações genitais na infância, quanto na sobrevivência de certa polimorfia perversa infantil no adulto. Realiza a descrição de distinções, mas ao mesmo tempo, promove uma atenuação da diferença quanto à sexualidade da criança e à posição do adulto. Essa atenuante entre ambas as vivências advém como consequência lógica em responder, afinal, por que passar das experimentações de prazer espalhados por todo o corpo na criança à uma posição adulta de escolha por um primado genital? Observa-se que, no percurso para o conhecimento, começamos por fazer uma ideia muito exagerada da diferença entre a vida sexual infantil e a madura, e agora fazemos uma emenda a isso.1

Longe de confundir ou comparar épocas distintas e campos epistemológicos diferentes, é interessante ler que autores em momentos diferentes se debruçaram sobre a temática das relações entre os tempos subjetivos da criança e do adulto. É o caso, por exemplo, de Neil Postman, quase cento e cinquenta anos depois de Freud. Ele descreve a descoberta do telegrafo elétrico como uma revolução de tanta magnitude que incluiu aí uma mudança epistêmica nas concepções das relações adulto/criança, separando essas duas posições a partir do segredo que essa radical mudança na comunicação implementou entre esses tempos de vida. Desse mesmo modo, aponta uma suspeita determinante de que a televisão e o uso de imagens realizam o movimento contrário: desconstruíram essa linha divisória imposta pelos telégrafos. Isso se deu três maneiras: por não requerer capacitação específica, não fazer exigências complexas à mente dos usuários, e não segregar seu público (Postman, 1999). Seja o primeiro ao se referir à constituição psíquica (sexualidade e fantasia), seja o segundo, referindo-se às relações de autonomia e saber, importa constatar que a pesquisa sobre esse litoral delimitando os lugares criança e adulto, sempre nos indagam. 

Se no nosso tempo não podemos deixar de pensar a participação da criança no mundo neo liberal, como um consumidor com características promissoras de fidelidade e mais tempo de consumo, não podemos sequer descuidar dos efeitos das relações do uso das mídias digitais em relação às posições adulto e criança. Como podemos pensar que nosso tempo tem tratado essa dissimetria/não dissimetria subjetivas? 

A hipótese dessa condição, que inclui também ruptura epistemológica (não exploraremos esse aspecto no texto), a partir dos parâmetros eurocêntricos e norte-americanos, é de que a chegada da internet e suas mídias digitais, acaba por revelar, numa volta à mais e de modo mais contundente, uma nova modalidade dessa disparidade. A distância geracional entre o pré e pós mídias digitais, carrega não exatamente um apagamento, mas uma novidade importante. Uma inversão nas relações de poder e saber entre as posições adulto/criança. De modo muito simples, mas não sem efeitos: o adulto não acompanha o ritmo e as descobertas decorrentes do mundo digital, na mesma proporção que não acompanha, portanto, a habilidade desenvolvida por crianças e jovens nascidos nessa época: decididamente os pais não sabem e não entendem o que os filhos fazem dentro da telinha. 

Essa marca temporal de diferença que delimita um antes e um depois da internet, institui de modo determinante, não apenas um estremecimento dos lugares de saber/poder entre crianças e adultos, mas descentra esses segundos do antigo lugar de referência para os primeiros. A criança não tem mais seus cuidadores principais como suas referências de conhecimento, tanto pelo não domínio da tecnologia envolvida, quanto pelo que os retira de maneira evidente de seu lugar de fonte (pelo menos única fonte) de referências importantes para as crianças. Não apenas a internet supostamente pode responder qualquer pergunta que uma criança lhe faça, mas seus cuidadores principais também recorrem a esse “oráculo” aparentemente atemporal e culturalmente descontextualizado das tradições familiares, ante as inquietações sobre como educar um filho. 

Importante perguntar: será que essa espécie de inversão de saber do adulto à criança no campo das mídias digitais, pode aparecer em outros campos das relações? Ou melhor, dado que não há um apagamento da disparidade das posições subjetivas adulto e criança, mas sobretudo, será que se trata de um para além dos efeitos de uma adultização nas crianças, mas também que estas denunciam uma posição de infantilização dos adultos, no sentido de “não entendo como isso funciona”?

Se há aí alguma resposta, trata-se do próprio caminho que a relação com a linguagem e o corpo nos provocam. “O que está em jogo não é necessariamente a impossibilidade de dizer, mas a impossibilidade de falar a partir de uma língua, isto é, de uma experiencia”, tomando a ideia do comum existente na linguagem. Agamben continua: “a aposta da infância é que, ao contrário, seja possível uma experiência da linguagem que não seja simplesmente construir silêncio na linguagem, ou uma insuficiência dos nomes, mas indicar sua lógica”2 de ser essa experiência incompatível com a certeza. 

O que define um mundo autocêntrico? Certamente esse mundo não se refere apenas a crianças desejando faz o que os adultos fazem, comprar o que os adultos compram, aparecer na internet como os adultos aparecem, decidir assuntos que os adultos decidem, esses são apenas índices e como tais não podem ser lidos descontextualizados. O mundo autocêntrico não seria unicamente um lugar de crianças ocupando a posição dos adultos, mas pode ser um mundo onde adultos e crianças estejam numa mesma posição em relação aos ideais da infância como um lugar de futuro, com a condição nessa idealização de que o vivido no presente não seja experimentado como tal. O mundo autocêntrico atual inclui uma infantilização dos adultos no sentido de não se posicionarem ante tomadas de posições importantes, em que podem se emprestar para sustentarem referenciais às crianças. 

Além do que, as relações da criança com o corpo, com a linguagem, com a inteligência, de como o desejo e o gozo incidem num tempo da experiencia de um presente que pode suportar a ineficiência dos nomes, por si só tempo efêmero. A ideia de contingência (Agamben, 2015), abre a possibilidade, por que não dizer, a oportunidade que a infância desperta, de poder ser e poder não ser ao mesmo tempo?

A possibilidade de me aproximar da delicadeza da vida dessas crianças para além da escuta na clínica, perpassa a transmissão dessa constatação de uma posição de criança desobediente à lógica da posição adulta. A contingência num tempo presente é uma condição para sustentarmos a disparidade das posições adulto e criança. Desse modo, difícil seria não perceber na criança a engenharia de sua invenção.

Um breve comentário sobre uma visita à Fundação Casa Grande em Nova Olinda no Cariri : 

A Fundação Casa Grande – Memorial do Homem Kariri foi fundada em 1992 com o objetivo de resgatar a memória e a cultura do povo do Vale do Cariri. As crianças ao assistirem o trabalho inicial de seus fundadores, começaram a querer participar, e assim, um outro projeto nasceu junto: a ideia de desenvolver a capacidade de liderança das crianças a partir dos laboratórios de produção. Elas participam de canal de TV, de rádio, um teatro, uma editora de gibis e um museu que conta com um rico acervo de HQs e clássicos do cinema. A Casa Grande com as crianças tem o desafio de proporcionar atividades educativas que propiciem uma relação profunda com a própria história delas, enquanto povo daquele lugar, para ampliarem seu repertório cultural e gerar perspectivas e oportunidades de inclusão social e profissional. Alemberg Quindins e Roseane Limaverde criaram núcleos pelos quais todas as crianças passam: Memória, Identidade, Patrimônio, Mitologia, Arqueologia, Gestão Cultural, Meio Ambiente, Arte, Cidadania, Turismo Comunitário e Sustentabilidade.

Se eu já estava com esse título para um trabalho escrito “Cadê o adulto que estava aqui? O gato comeu”, após essa visita à Fundação Casa Grande e minha admiração pelo trabalho ali realizado, essa ideia tomou uma outra dimensão, reorientando minhas hipóteses iniciais sobre as relações entre crianças e adultos e seus os efeitos que se acentuaram no pós pandemia. 

 Há um elemento que importa destacar a partir dessa visita à Fundação Casa Grande. Eles firmaram um acordo coletivo que delineia uma pista para avançarmos sobre a dissimetria entre as posições subjetivas adulto e criança em nosso tempo. Os pais e familiares não se metem nas discordâncias, discussões ou brigas entre crianças e adolescentes, mesmo que no espaço da Casa sempre tenham alguns adultos que ali estejam trabalhando em algum projeto. Há uma aposta: crianças e adolescentes se resolvem.

O qual a distância entre a situação de insegurança nas crianças que tenho tido notícias aqui numa capital, como Salvador, e as crianças que frequentam a Fundação Casa 

Grande? 

Finalizo esse breve escrito com a forte hipótese de que o sustento da disparidade subjetiva entre as posições adulto e criança é um recurso fundamental do nosso tempo para que rupturas do tecido social e as fragilidades psíquicas, possam ser inscritas numa lógica da/pela coletividade. É preciso para tal que possam receber um contorno que se faça litoral, um litoral que brinque com o tempo do literal, um litoral inventivo que instaure o domínio inteiro formando uma fronteira, por terem e não terem nada em comum. 

 1 – S. FREUD (1905) “três ensaios sobre a sexualidade”. Obras completas, são Paulo: Imago, 1969. p. 218.

2 – G. Aganbem, Infância e história, destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: ed UFMG, 2014. P. 13. 

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Referências 

AGAMBEM, G. (2014). Infancia e História, destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: editora UFMG. 

AGAMBEM, G. (2015). Bartleby, ou da contingência. Belo Horizonte: Autêntica. 

FREUD, S. (1905) “três ensaios sobre a sexualidade”. Obras completas, são Paulo: Imago, 1969.

POSTMAN, N. O desaparecimento da Infância. Rio de Janneiro: Graphia, 1999. 

ROHENKOHL, C.M.F. Considerações sobre a noção de natureza infantil na obra de Freud. Dissertação de mestrado, orientado Luiz Roberto Monzani. UNICAMP, 2002. 

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