Começo com uma provocação: será que algum dia analistas serão substituídos por robôs, desses que conversam na internet? Se você é um analista, sua resposta imediata com certeza foi: `Nunca`. Tendo a concordar! Mas, talvez, se procurarmos irmos mais fundo nesse tema, não consigamos avançar muito e, é bem provável, que fiquemos longe de alcançar um consenso entre os diversos analistas. Por que, afinal de contas, a inteligência artificial (IA) não substituirá com sucesso os analistas? É preciso ter mais que uma resposta intuitiva baseada em nossa experiência, para dar conta dessa questão.
Penso que há dois anos falar sobre um Bot analista pareceria muito mais estranho do que hoje. O que mudou? A popularização da inteligência artificial com um programa de uso disseminado: o Chat GPT. Com ele, a inteligência artificial entrou na ordem do dia das conversas em geral. Desde as rodas intelectuais às mesas de bares, causou toda uma repercussão e colocou no horizonte um certo perigo que tecnologias como essa possam representar.
Pois bem, aqui em São Paulo, um grupo de psicanalistas, entre os quais me encontrava, discutia o tema. Nos animávamos e nos divertíamos bastante, o que levou a criação de um grupo de whatts a que denominamos, remetendo a nossas brincadeiras, de `Fim do mundo`. Talvez subjacente a essa brincadeira esteja o fantasma do fim da psicanálise. Ou, ainda, do fim do analista. Afinal, se um sujeito artificial for possível, acabou nosso mistério. A grande noite do inconsciente encontrou seu fim.
Quem já teve a oportunidade de usar o Chat GPT, com certeza, ficou surpreendido com uma certa estranheza que ele é capaz de provocar com suas respostas. Chama atenção como reage a seus enganos e nossas contestações. Ele pede desculpas e se corrige. Ele quem, cara pálida? A resposta mais imediata seria: o Chat GPT. Mas, espera aí, o Chat GPT é um outro? Para começar o outro só existe para cada um de nós, enquanto sujeitos. Se constituímos em algum lugar um outro, temos a mesma lógica do oráculo ou do analista: só existe para cada um. Então, se você considera o Chat GPT um interlocutor, ou um robô sexual seu parceiro ou sua parceira, você os constitui como seus outros. Aqui é proposital trazer na mesma frase o outro da linguagem e o outro do sexo. Difícil não pensar que o lugar dado aos pets em nossos dias não seja um sintoma de certa alteridade perdida.
Há, pelo menos, três maneiras possíveis dos psicanalistas abordarem nossa relação com a inteligência artificial: 1 – como campo de pesquisa para nossa teoria, criando uma analogia; 2 – usando a psicanálise como fonte de modelos para a IA; ou, ainda, 3 – encarando-a, como ameaça.
Quando Freud abordou os estados hipnóticos, os sonhos, os chistes, lapsos e atos falhos, de alguma forma, usou esses campos, do que vou chamar `consciências alteradas`, para construir sua concepção de inconsciente. As falhas da consciência exigiam uma explicação e, para ele, essa explicação eram os processos inconscientes. Foi através de analogias que ele avançou. A consciência as vezes falha e deve haver um motivo para isso. O Isso. O inconsciente. É uma resposta diferente para a questão de Descartes: meus sentidos as vezes me enganam, como posso ter certeza que não me enganam sempre? Pois bem, para Freud, vivemos um eterno engano. A verdade está em outro lugar.
Introduzo uma questão: por que a psicanálise não é chamada ao debate das ciências da cognição? Vou usar para dar suporte a ela, esse esquema, que tiro de um livro do Gardner, `A nova ciência da mente`:
Como você podem ver, Gardner reúne ao redor de uma hexágono os campos que contribuem com o que ele chama `Ciências da Cognição`. A psicanálise não aparece entre elas. Mesmo porque não poderia aparecer, uma vez que a cognição não é nosso objeto. Nosso objeto, desde Freud, é algo que está aquém da cognição. A cognição é seu produto, seu engano.
A questão é que nem sequer fomos convidados para esse banquete. Tenho certeza, porém, que nossa falta faz falta. Teríamos, sem dúvida, uma importante contribuição a dar: a falta. Mas, as ciências não suportam a falta. Para elas, segundo Kuhn, a falta é a crise do paradigma em que se fundam.
Costumo brincar que quando se trata da inteligência artificial, seria melhor chamá-la de burrice artificial. Falta-lhe algo para que possa emular a instância de quaisquer um de nós. Falta-lhe a arte, o improviso, a criatividade, o sofrimento, o gozo. Falta-lhe a falta. Ainda que, de alguma maneira, e de forma acidental, aqui e ali, encontremos na IA algumas pesquisas inspiradoras no que se refere a isso.
Desde Freud, no final do século XIX até hoje, nada fizemos além de lidar, em nossos consultórios com os efeitos da falta. Somos doutores da falta. Lidamos com ela através da linguagem que tende a tamponá-la. Uma espécie de efeito pós-hipnótico contínuo.
Pouco importa que sejamos criados por ela, a linguagem, e a partir dela, a falta. O fato é que sofremos, pagamos o preço dessa operação com nossas libras de carne e gotas de sangue. Que para tamponar a falta nos inscrevemos no grande Outro. A alternativa a isso seria a não inscrição, a psicose.
Vamos fazer nosso próprio banquete? Podemos usar a inteligência artificial, no que ela procura imitar os processos cognitivos humanos, como anteparo para nossa teoria, no estado que ela se encontra hoje, tal qual Freud fez com os sonhos? E por tabela podemos abordar os problemas comuns, inclusive os nossos, do campo das chamadas Ciências da Cognição?
Será, entretanto, a construção dessa analogia possível? Temos tudo que é necessário à mesa de nosso banquete? Psicanálise e inteligência artificial são como dois planetas distantes que habitam sistemas solares diferentes. Apesar disso, como acontece com os planetas reais que devem obedecer às mesmas leis da física, têm em comum um território compartilhado. Pode-se tudo em um campo e outro, mas não se pode escapar dos efeitos do real. Cada físico pode construir seu universo, mas nada impedirá a Terra de continuar a girar em torno do Sol. Ou como diria Galileu: Deus quer que minhas esferas sempre caiam da mesma maneira sobre o plano inclinado.
Devemos começar, talvez, perguntando que modelo de tópica ou topologia usaremos: a primeira ou segunda tópica freudiana? O estádio do espelho, o grafo, o nó borromeu? Bem, comecemos do início.
A primeira pergunta provocativa que quero fazer é: o Chat GPT possui inconsciente? Se possui, é como qualquer um de nós, caso contrário é de outra espécie. Para responder essa pergunta, precisaremos antes de qualquer outra abordagem, definir de que inconsciente estamos falando. Nesse post, tomarei como referência o inconsciente de Freud que desliza desde o `Projeto para uma psicologia` até primeira tópica freudiana, como apresentada no Capítulo VII da `Interpretação dos sonhos`. Adianto que o Projeto para uma psicologia tem sido fonte para alguns teóricos da IA. E penso que no seu interior temos muitos territórios inexplorados. Sobre um deles, no momento, construo um texto que chamo `Um detalhe in-significante`. Em breve, espero postar aqui no blog um resumo desse texto.
Se pensamos no famoso esquema do capítulo VII, da interpretação dos sonhos, o grande banco de dados do Chat GPT se assemelha aos traços mnêmicos. Sem a sofisticação proposta por Freud em sua organização: temporalidade; similaridade; espacialidade. O seu fil rouge são os textos. Ele é uma inteligência artificial baseada em Big Data. Significa dizer que recolhe uma imensidão de textos na internet, organiza, e quando questionado, busca uma resposta a partir desse tesouro gigantesco. Num movimento moebiano podemos pensar o Chat GPT também como a enciclopédia das enciclopédias. De Freud a Lacan, voltando a Freud, um retorno irrecusável.
O que nos permite voltar ao tema da alteridade do Chat GPT: falar dessa alteridade está longe de ver aí um pequeno outro, mas um simulacro de grande Outro. Mas, peraí: o Grande Outro pode se metafosear no pequeno outro? Desde que o queiramos, sim! Mas, será que o queremos? Amar é dar o que não se tem aquele que não é. Falta a falta ao Chat GPT. Difícil amá-lo. Apesar de aqui e ali, pipocarem casos de pessoas se apaixonando por robôs e criaturas virtuais. Afinal, Frankenstein é apaixonante, não é?
Falei que alguns pesquisadores de IA tem o `Projeto de uma psicologia`, como inspiração. Que modelo de IA esse texto pode gerar? E as outras tópicas freudianas?
Há uma questão no projeto que transpassa para além de seu tempo: a fonte de organização do aparelho psíquico. Em determinado momento é a necessidade. Ela faz capturar objetos do mundo externo. Faz a ligatura entre a fome e o seio da mãe. Em outro, encontramos uma invenção freudiana: os neurônios chave. Que o deixa em uma posição muito incômoda. Esse será o tema central de `Um detalhe in-significante`.
Interessa dizer, entretanto, que tanto no Projeto como na primeira tópica, existe algo, um isso, que movimenta o aparelho psíquico. Daí derivará muitas questões e respostas ao longo da teoria psicanalítica: pulsão; falta; objeto pequeno a; S1. Podemos traçar toda uma epistemologia em torno dessa questão.
Como o modelo do Chat GPT enfrenta a questão desse `isso`? Primeiro ele dorme. E não sonha. Essa ideia me parece divertida. Ele só é despertado quando alguém lhe pergunta algo. Sua vigília permanece até o momento em que responde. E volta a dormir. Sua inspiração é, portanto, nossas perguntas. Falta-lhe esse objeto interno, esse resto de operação de sujeito que em Lacan é o objeto pequeno a. Se ficasse remoendo sua resposta como produto dessa operação, teríamos mesmo que nos preocupar.
Esse é o ponto em que, talvez, os psicanalistas possam ser convidados ao banquete das ciências da cognição. Para se sentar na cabeceira, eu diria. A invenção de um sujeito artificial.
O Chat GPT representa uma ameaça? Para quem? Em princípio, para os humanos, se acreditam em filmes de ficção científica e algumas reportagens sensacionalistas. Ela pode por fim a humanidade. Mas, também, para nós psicanalistas, visto que, se uma IA autônoma for possível, uma apreensão artificial de mundo for factível, não só Kant, Wittgenstein, Saussure e diversos pensadores estarão sob escrutínio, mas a própria psicanálise. Lembremos a fala de Lacan no Seminário 17: `A primeira de nossas regras é não fazer interrogações sobre a origem da linguagem, nem que seja porque ela se demonstra suficientemente em seus efeitos`. Uma linguagem artificial rompe com essa `primeira de nossas regras`.
Se inexiste sujeito fora da linguagem, se esse sujeito artificial for criado, ele estará inserido na linguagem. Se esse é o caso, será neurótico. Ou psicótico. Já se imaginaram recebendo um robô com incômodos em seu consultório? Outra ideia que me parece divertida.
O outro lado dessa moeda, porém, é pensar em um robô sem sujeito, mas que possa sustentar uma relação de alteridade. Um analista possível? Uma analista ideal? Isso não se aplica ao Chat GPT é claro. Ele está sempre respondendo. Atua no nível da demanda.
Pensemos nessa questão: os problemas na transferência são provocados pelos restos de sujeito do analista. Pela sua parte que não foi analisada. Por aquilo que ele produz, não como lugar do vazio, repercutindo a cadeia de significantes, mas o resto que lhe ficou, como mal-estar provocado pela sua produção fora de lugar. Que ele leva para sua supervisão ou para sua casa. O Bot analista, sem sujeito, não sofre desse mal.
A lógica que fui traçando é, claro, absurda. As analogias servem para isso. Na `Interpretação dos Sonhos`, Freud se pergunta em relação ao sonho da estação de trem se ele foi formado ao acordar ou enquanto o sonhante dormia. Questão fundamental, mas que passa rápido e onde ele não se detém. Apesar de voltar a ela diversas vezes de muitas maneiras.
Quero deixar uma última provocação que me parece fértil: se o sujeito artificial for possível, os robôs serão neuróticos e o mercado de analistas será expandido? Por outro lado, um robô sem sujeito, mas dotado de determinadas regras heurísticas que permitam sustentar uma certa alteridade, será o analista ideal? Isso representará o final de nossas clínicas? Que cada um responda com seu sintoma, com sua loucura.