O capítulo censurado do LSD na psicanálise latino-americana – Cosmopolita
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O capítulo censurado do LSD na psicanálise latino-americana

Me lembro como se fosse hoje, mas na verdade foi há alguns anos, alguns vários anos. Eu estava no primeiro mês da faculdade de psicologia, curioso, entusiasmado, lendo os primeiros textos. Já tinha lido uma coisa ou outra sobre a psicanálise e já intuía que meu caminho seria por aí, ainda que à época achasse a figura de Jung muito mais cativante que a de Freud. Foi nesse contexto que usei psicodélicos pela primeira vez, a Ayahuasca. Um chá consumido há séculos por diversos povos originários das Américas (e hoje em todo o mundo) com uma série de finalidades, entre elas cura, adivinhação, feitiçaria, caça e comemorações. Nos centros urbanos, e dentro da lógica ocidental, ela é usualmente usada para autoconhecimento e com finalidades terapêuticas diversas.

Anos depois, ingressando no mestrado para estudar o chá e mergulhado de fato na psicanálise, me espantei ao perceber que há um distanciamento notável dos campos psicanalítico e psicodélico. E mais, isso ocorre apesar do crescente interesse de outras disciplinas como a psiquiatria, a neurologia, e abordagens terapêuticas junguianas, fenomenológicas e transpessoais, pelas substâncias psicodélicas. Foi durante minhas pesquisas que descobri que houve um período, sobretudo nas décadas de 1950 e 1960, em que psicanalistas e psiquiatras influenciados por Freud estavam na linha de frente de pesquisas e experiências sobre o tema. Durante esses anos, substâncias como os cogumelos mágicos, a mescalina e o LSD estavam sob intensa investigação. 

Psicodélicos podem estimular atividade desejante, insights e sonhos, além de abrir possibilidade de fala e serem substâncias com baixíssima dependência. Mas para seguir essa história, devo te alertar que iremos nos distanciar da Ayahuasca, pois foi outra substância que chamou a atenção dos psicanalistas naquele momento. Isso se deu após a sintetização do LSD pelo químico suíço Albert Hofmann, realizada em 1943, e disponibilização em larga escala pela Sandoz, indústria química suíça para a qual Hofmann trabalhava, que incentivou pesquisadores a trabalharem com essa recém-descoberta que prometia efeitos impressionantes na subjetividade humana. Pesquisas de viés psicanalítico aconteceram nos Estados Unidos, Canadá, Europa e América Latina. 

Inicialmente esses psicanalistas norte americanos, canadenses e europeus esperavam criar um “simulador de psicoses”, sobretudo para o tratamento da esquizofrenia. A ideia era interessante: o psicanalista sob efeito do LSD poderia vivenciar temporariamente e de forma segura a ‘loucura’ da psicose, entendendo seu funcionamento. Tentaram também tratar psicóticos com a substância. Esse modelo fracassou e foi abandonado por duas razões principais: saber que está sob efeito de algo que altera sua consciência não se parece em nada com a psicose, e pacientes psicóticos que recebiam a substância regrediam em seus quadros, com ainda mais desorganização. 

Depois vieram outros modelos terapêuticos, com outros pacientes e outras expectativas. O LSD foi oferecido para indivíduos de estrutura neurótica com condições diversas: abuso de álcool, traumas, depressão, quadros maníacos e pacientes em processos psicanalíticos estagnados. Esses pesquisadores psicanalistas começaram a perceber que sob efeito psicodélico os participantes não psicóticos se demonstravam mais abertos para falar de temas mais complexos e profundos, traumáticos. Assim como postulava a psicanálise da época, eles seriam capazes de desbloquear o inconsciente e acessar materiais inconscientes reprimidos. O sujeito recebe o LSD e faz uma sessão de psicanálise, fala e talvez acesse novos materiais, tenha insights. Também ocorreu que efeitos transcendentes e místicos do LSD passassem a ser notados e investigados.

A história é longa e muito interessante, mas ficará para outro momento. Hoje gostaria de te contar brevemente uma outra história e que faz ainda mais sentido para nós, psicanalistas brasileiros. Eis que minha surpresa foi ainda maior ao descobrir que aqui na américa latina, sobretudo nos nossos vizinhos argentinos, uma longa e produtiva pesquisa psicodélica foi empreendida, com décadas de trabalho, pesquisas, artigos, livros, e centenas de pacientes atendidos. Essa história ‘apagada’ dos registros psicanalíticos e que pretendo te contar hoje.  


Hermanos psicodélicos:


Se lá fora os psicanalistas publicaram numerosas pesquisas, na Argentina, durante este mesmo período, importantes psicanalistas em renomadas instituições se interessaram por psicodélicos. Destaque para Luísa de Álvarez de Toledo, presidente da Associação Psicanalítica Argentina (APA) entre 1956 e 1957, a primeira mulher a ocupar esse cargo, para Alberto Fontana, Francisco Pérez Morales e Alberto Tallaferro, todos psicanalistas da APA, o último inclusive que trabalhou próximo de Enrique Pichon-Rivière, psiquiatra e psicanalista que já trabalhava com a Narcoanálise na Argentina, e que de alguma forma também cercava este ambiente de pesquisas. 

Luísa de Álvarez de Toledo, entre os anos de 1957 e 1960 publicou quatro artigos sobre o uso do LSD como acompanhamento à psicanálise. Ela acreditava em uma espécie de regressão artificial induzida por psicodélicos, que não visava encurtar o processo analítico, mas aprofundá-lo. É relevante dizer que a mesma Luísa de Toledo, em 1959, veio à selva amazônica atrás da experiência com a Ayahuasca. A experiência foi amplamente relatada em artigo de 1960, documentando práticas pouquíssimo conhecidas do universo psicanalítico.

Toledo, Pérez e Fontana foram os responsáveis por um grupo de trabalho que operou nas décadas de cinquenta e sessenta, e utilizavam substâncias psicodélicas combinadas com psicanálise individual e em grupo. O processo acontecia com 2 sessões por semana. Antes de receber a substância o paciente passava por no mínimo 2 meses de sessões com o terapeuta que o acompanharia no processo. Havia uma interessante formulação: o LSD era mais usado para sujeitos na estrutura obsessiva, por ter mais efeitos psicodélicos e duração mais longa, com menos efeitos corporais. Ou seja, os efeitos psicodélicos afetivos, com intensa carga emocional e difícil controle do efeito, poderia ajudar esses sujeitos a, digamos, desengessar, surfar em outros processos menos autocentrados e rigorosos. Pessoas na estrutura histérica recebiam o cogumelo, efeito mais curto, com menos efeitos visuais e mais efeitos somáticos. Uma terapêutica mais focada no corpo. 

Os dados da clínica são impressionantes. Entre 1957, ano de início dos atendimentos, até 1967 havia 500 pacientes ativos e 1106 que passaram nesse meio tempo, inclusive crianças. Para os pesquisadores, a substância ajudava na compreensão de motivações profundas no aqui e agora, podendo estreitar a conexão com o terapeuta. Vale destacar que além dos pacientes, todos os analistas que vieram a trabalhar com psicodélicos passavam por longa formação, que durava três anos, os terapeutas passavam por psicoterapia individual e grupal, além de sessões prolongadas com LSD na técnica psicodramática. Além das análises individuais com a substância, havia grupos de supervisão coletiva com psicodrama

Para os pacientes da clínica, além das psicodramatizações e demais atividades corporais, havia espaço amplo para a fala, utilizando o recurso psicanalítico da livre associação, seguido das interpretações do terapeuta. O fim da sessão em grupo ocorria somente depois da finalização da possibilidade de trabalho com o material desenvolvido.

A essa altura do texto talvez você possa estar se perguntando por que nunca ouviu falar nessa história, ou por que não há relatos, comentários, e por que essa linha de pesquisa não seguiu? Explico de forma resumida. A profícua onda psicodélica foi barrada ainda nos anos 60, nos Estados Unidos, pelo FDA (Food and Drug Administration) sob comando do presidente Richard Nixon, quem nomeou o professor da Harvard, Timothy Leary, que se tornou uma espécie de guru psicodélico “O homem mais perigoso da América”. Leary e seu slogan ‘turn on, tune in, drop out’, ou ‘se ligue, sintonize e caia fora’, começou a convencer jovens estudantes norte-americanos que outras opções à guerra e ao consumo poderiam ser possíveis. Perigosíssimo.

Na Argentina, apesar dos dados promissores, todos os psicanalistas envolvidos se prejudicaram por conta dessa experiência subversiva. Mariano Plotkin, historiador argentino, revela dados ‘recalcados’ do meio psicanalítico, ou ao menos profundamente negligenciados. Segundo Plotkin, a APA sempre rejeitou o uso terapêutico de drogas. Por isso, Luísa de Toledo foi condenada ao ostracismo e não ocupou outros cargos importantes na APA, Perez Morales foi forçado a renunciar após rejeição a se tornar membro associado, Alberto Fontana renunciou em protesto  A repercussão não foi pouca, e em 1961 a “Revista de Psicoanálisis”, primeira publicação psicanalítica em espanhol fundada em 1943, publicou um anúncio de página inteira denunciando que os “desvios ligados ao uso de drogas – LSD, mescalina, benzedrina, tranquilizantes, cortisona etc. – não deve ser considerado tratamento psicanalítico independentemente de quem realiza tais tratamentos”. 

Encerro esse texto com uma provocação, um convite a você leitor, que talvez se interesse pelo tema e esteja acompanhando o renascimento psicodélico que estamos testemunhando. O uso de psicodélicos se torna cada vez mais comum e muitos de nossos pacientes, ou futuros pacientes, podem ter tido experiências psicodélicas ou almejar por fazê-las em segurança. A psicanálise parece ser uma ferramenta particularmente adequada para o manejo psicodélico. Os analistas possuem grande experiência de manejo na lida de quadros emocionais conflituosos e regressivos, e em nos mantermos receptivos e desejantes frente ao discurso do outro. Psicodélicos oferecem à psicanálise um convite para revisar e expandir nossas teorias. 

Estados alterados de consciência já estão no escopo de trabalho do psicanalista, vide a associação livre, a atenção flutuante, os sonhos, os lapsos e as dissociações, e isso torna o psicanalista um profissional qualificado para práticas psicodélicas e sobretudo para a integração dessas experiências. Talvez o que ainda nos falta, e este trabalho se propôs a colaborar com essa questão, é restabelecermos este antigo diálogo.

Indicação de leitura sobre o tema:

FONTANA, Alberto. Psicoterapia com LSD e outros alucinógenos. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1969

ORAM, Mathew. The Trials of Psychedelic Therapy. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2018 

SCHOLTEN, Hernán, ELCOVICH, Hernán. Las primeras publicaciones sobre el uso experimental de la LSD25 en Sudamérica (1954-1957) Asociación de Psiquiatras ArgentinosResidentes en el país y en el exterior, Buenos Aires, ano 60, número 59. 2017

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