Na terceira conferência do ciclo Psicanálise e Educação1, intitulada A Nova Ordem Escolar, Rinaldo Voltolini mobiliza alguns ideias de estudos sobre a educação para pensar, a partir da psicanálise, a crise ou o declínio da institucionalidade da escola. Haveria ocorrido uma mutação na ordem escolar, ou seja, estaríamos diante da emergência de um novo paradigma, que torna possível pensar a passagem de uma escola do ócio para uma escola do negócio? Tendo em vista essa questão, Rinaldo Voltolini propõe essa distinção para pensar a relação que cada uma dessas escolas estabelece com o mercado. Nesse texto, pretendo seguir algumas pistas deixadas por Voltolini nessa conferência e, a partir dessa passagem de uma escola à outra, pensar as implicações discursivas do estilo capitalista na ordem escolar.
A escola do ócio recusa a demanda do mercado e, por isso, em sua temporalidade não produtiva, ela é vista como uma instituição anacrônica e defasada. Na década de 1980, segundo Voltolini, a instituição escolar atravessou uma renovação metodológica, que surgiu como resposta a uma entropia do discurso pedagógico. Uma das críticas que se fazia, naquela época, ao discurso pedagógico apontava para o autoritarismo do professor e a desigualdade que a escola reproduzia em suas relações. Na medida em que a escola fazia laço com a lógica da dominação, de acordo com essas críticas, poderíamos encontrar na base da relação entre professores e alunos, assim como na relação entre mestres e discípulos, a dialética do senhor e do escravo. Mas que tipo de laço social era então possível para a instituição escolar? Apesar da importância dessas críticas para a renovação metodológica da escola na década de 1980, talvez o bebê tenha ido pelo ralo junto com a água suja do banho.
Na escola do ócio, há um relação com o saber que surge da assimetria entre professores e alunos. A palavra do professor transmite algo, para além do conhecimento do mundo, e essa transmissão o autoriza a ocupar uma posição de prestígio na ordem escolar. A crítica ao autoritarismo que demandou da escola uma renovação de seus métodos colocou em xeque também a posição do professor em relação ao saber. Se a autoridade do professor corresponde à institucionalidade da escola, seu lugar social depende, então, do reconhecimento da escola como uma instituição legítima que, ao lado da família, porém, com funções distintas, visa educar as crianças e os jovens.
Na escola do ócio, a ordem escolar realiza incessantemente um quarto de giro entre o discurso do mestre e o discurso universitário. O aluno, colocado discursivamente no lugar da produção, experimenta, em sua divisão subjetiva, uma escolha entre duas atitudes, a saber, fazer com relutância aquilo que ele sabe que não é permitido não fazer ou fazer com afinco aquilo que ele sabe que é esperado dele. E isso se repete. Esse é o modo de gozar que o aluno pode encontrar na escola do ócio. Para Lacan (1969-70: 1992), essa relação com o gozo, a partir dessa repetição que põe o sujeito em uma relação específica com o saber e com a verdade, é modulada pela função do desejo. No lugar do agente está o professor, que dá um sinal, o significante mestre, e todos os alunos devem correr para aprender o que lhes é ensinado. Mas nessa corrida o aluno, em sua condição de aluno, não pode ganhar. É impossível. Ele corre como uma tartaruga que tem sobre seu casco um coelho astuto, o qual lhe oferece uma apetitosa cenoura cujo sabor é impossível provar, mas, porque está pendurada à sua frente como uma isca em uma vara de pescar, faz a tartaruga se mover. Essa impossibilidade é estrutural na escola do ócio porque, posto no lugar do agente, o professor age simbolicamente como operador da castração. Essa função essencialmente simbólica que é a castração, conforme Lacan (1969-70: 1992), faz com que o aluno seja reconhecido como um sujeito que deseja e, na ordem escolar, deve trabalhar sob o comando do professor. Como um operador estrutural da relação entre professor e aluno, a castração é concebida exclusivamente na articulação significante, que implica sempre um perda. Ela está colocada no primeiro andar do discurso do mestre (S1 —> S2) e aponta para uma interdição na ordem simbólica, o não do pai, que marca o sujeito na sua relação com o significante.
Antes de passar aos efeitos do discurso do capitalista na ordem escolar, gostaria de fazer algumas considerações sobre a invenção grega da skholē (σχολή) e sua experiência (esquecida), que herdamos sem nenhum testamento dos antigos. Quando ouvimos hoje a palavra escola, ela nada mais tem a ver com a invenção grega da skholē. Costuma-se traduzir o termo skholē por tempo livre. Para nós, a ideia de ter um tempo livre está associada à ausência de trabalho e, por isso, pode envolver toda sorte de passatempos. Tempo livre é, nesse sentido, sinônimo de lazer ou recreação. Podemos nesse intervalo da vida laboral fazer o que nos apraz. Podemos nos distrair com o que é inútil e improdutivo, do ponto de vista do capital. Podemos gastar nosso tempo brincando e nos divertindo, afastando-nos temporariamente das necessidades da vida e das obrigações do trabalho. Porém, não era isso que os gregos entendiam por skholē. Hannah Arendt (2017) nos lembra de que a invenção grega da skholē estava diretamente ligada à descoberta da contemplação pelos filósofos antigos e, portanto, o que entendemos por lazer é precisamente o contrário do que os gregos entendiam por skholē. A recreação e o jogo, conforme Arendt (2017), pertenciam à esfera do lazer, ou seja, eram atividades ligadas ao domínio da a-skholía, pois eram necessárias à restauração da força do labor humano.
Os latinos deram outra tradução possível para tentar enunciar a experiência grega contida na palavra skholē. Eles privilegiaram um aspecto dessa experiência que a ideia de tempo livre nos deixa escapar. Para os latinos, otium era um retiro com vagar, um estado de tranquilidade da alma, que era uma das condições necessárias para a contemplação. Por isso, a negação da ociosidade, negōtioum, consistia em fazer render alguma coisa; tirar proveito de algo; ter e cumprir certas obrigações; estar ocupado com os negócios. À primeira vista, poderíamos opor a agitação dos negócios à tranquilidade do ócio. Poderíamos supor, de um lado, que o negociante fosse um ser ativo ou estivesse, na maior parte do tempo, em plena atividade; e, de outro, o ocioso fosse um ser passivo ou estivesse quase sempre em total inatividade. É certo que, para os latinos, a palavra otium também abarcava a ideia de repouso e descanso. Mas, ao retirar-se com vagar do mundo dos negócios, o ocioso podia justamente se engajar em atividades que demandavam sua presença e atenção.
A escola do negócio atende prontamente a demanda do mercado. Ela busca inovar seus métodos não porque, com o passar do tempo, tenham ficado ultrapassados, mas porque seu gozo, colocado no lugar do outro, está em consumir tudo o que é novo. E nesse consumo desenfreado, a escola do negócio consome a si mesma em seus efeitos mortíferos. A morte é o significante-mestre do discurso do capitalista que, segundo Lacan (1969-70: 1992), é uma mutação do discurso do mestre. “Alguma coisa mudou no discurso do mestre a partir de certo momento da história” (Lacan, 1969-70: 1992, p. 188). Essa mutação que confere ao discurso do mestre seu estilo capitalista marca o sujeito a partir do objeto que não cessa de se inovar. No lugar do agente, a morte marca a entrada do sujeito na cadeia significante. É nesse sentido que Rinaldo Voltolini destaca que, na escola do negócio, existe uma inflação do indivíduo e, consequentemente, uma deflação do sujeito. O efeito mortífero do estilo capitalista na escola do negócio é a marca do sujeito, seu traço unário, que delimita seu modo de gozar. Na escola do negócio, o professor deve morrer para que a morte possa marcar o aluno e mascarar sua castração. No lugar do agente, como significante mestre, a morte e o corpo mortificado do professor se equivalem. Para que o aluno individualmente possa explorar seu gozo, possa contabilizar e acumular seus ganhos, e nunca admitir a perda senão como fracasso, foi preciso que ocorresse uma mutação no laço social, uma mudança que permitisse pensar discursivamente o professor como mediador ou facilitador de uma sociedade da acumulação do conhecimento e do capital. Seu papel de mestria, de alguém que, além de ensinar conteúdos, transmitia também uma certa relação com o saber, foi substituído, nessa nova ordem escolar, por uma figura opaca e fria, mórbida, de alguém que promove a aprendizagem do aluno. Ele não é mais quem dá um sinal e faz o aluno trabalhar, mas quem diz: – estou aqui para trabalhar com, e se for preciso, por você. Faço tudo para facilitar o seu gozo. Sob o imperativo superegoico do goze! E seja feliz!, a escola do negócio funciona com base na competição e concorrência, fazendo laço com o ideário neoliberal. “Que outra coisa é apreensível no termo feliz senão, precisamente, a função que se encarna no mais-de-gozar?” (Lacan, 1968-69: 2008, p. 23). A função do mais-de-gozar na escola do negócio opera a partir da lógica perversa: eu sei que é assim, mas mesmo assim… Eu sei que não há relação sexual, mas mesmo assim, na escola do negócio, há relação sexual. Eu sei que educar é uma profissão impossível, mas mesmo assim, na escola do negócio, nosso Lema(nn) é educar! Nessa nova relação com o saber e com a verdade, a escola do negócio renuncia a impossibilidade que move o desejo em nome da impotência que aspira ao gozo sem entraves.
REFERÊNCIAS
ARENDT, Hannah. A vida do espírito. 6ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 16: de um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
______________ O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de janeiro: Zahar, 1992.
- Conferência disponível em: https://www.youtube.com/live/OXQAEas8wvI?si=NBUUsMCck-9T50SR,
no canal Estúdio IPEP Psicanálise, no Youtube. ↩︎