Em meados de 2012, nos corredores do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, conheci Leo, um estudante de intercâmbio de origem alemã que fazia a sua formação na Áustria, na Universität Salzburg. Acabamos nos aproximando e não pensei duas vezes antes de recomendar-lhe os seminários de Joel Birman, oferecidos para os alunos de graduação do IP. Na ocasião, Birman trabalhava o texto metapsicológico de Freud sobre as pulsões, no contexto da famosa disciplina Teoria Psicanalítica E. Sensível, e sabedor das dificuldades em que ele se encontrava para acompanhar as aulas, emprestei a Leo uma edição alemã dos Metapsychologische Schriften que tinha em minha biblioteca. Sempre muito educado e cordial, ele agradeceu, mas, claramente, não parecia tão entusiasmado quanto eu com o projeto.
Pouco mais de dois anos mais tarde, em dezembro de 2014, encontramo-nos em Munique, onde moravam seus pais, pessoas adoráveis que me acolheram calorosamente em sua bela residência, localizada nos arredores da cidade. Na época, eu já havia me estabelecido na França e iniciado meu doutorado na Universidade de Paris 7. A mãe de Leo, que tinha um percurso pela psicologia, indagou-me entusiasmada se eu conhecia os trabalhos de Alfred Adler. Respondi que sim, mas que, até onde eu sabia, Adler não era mais do que um personagem menor da história da psicanálise, um daqueles discípulos rebeldes de Freud, esquecidos pelo movimento ao longo do século XX. Ela não entendeu, mas, no calor do momento, achei que isso tinha mais a ver com aquele diálogo truncado em língua alemã, do que com o conteúdo propriamente dito da conversa. Muito mais tarde, descobri o fato de Adler ser um autor ainda bastante lido e estudado por lá.
De Munique, pegamos um trem para Viena, onde passaríamos o Natal daquele ano. Nós nos alojamos no apartamento de Randy, um fotógrafo norte-americano que morava em uma movimentada zona residencial da cidade, não muito longe do mercadão de rua local, o Nashmarkt. Estávamos em quatro, saímos a pé naquela noite e nos instalamos, sem hesitação, em um típico bar alternativo da região. Um pouco em inglês, um pouco em alemão, passamos algum tempo conversando sobre Freud e psicanálise, e, para Randy, tudo aquilo parecia um tanto artificial e anedótico. Meus aprofundados conhecimentos de metapsicologia freudiana, adquiridos com muito suor ao longo de minha formação universitária, foram considerados ali como uma curiosa – para não dizer estranha – erudição.
Aquilo que era normal e mesmo cotidiano nos círculos acadêmicos que eu costumava frequentar no Brasil, entre São Paulo, Campinas e Rio de Janeiro, era considerado estranho e, por vezes, incompreensível para os meus colegas estrangeiros. Leo já sabia disso, mas se limitou a dizer em tom jocoso, após algumas cervejas: “Para eles” – para pessoas como eu, ele queria dizer – “Viena é uma espécie de Meca, e o museu Freud quase um santuário”. Uma ficha caiu para mim naquele momento, que me levou a ressignificar uma experiência, anterior, que eu tivera em Paris diante do cabinet du Dr. Lacan, na rue de Lille, número 7, não muito longe do Museu de Orsay, em uma região nobre da capital francesa. Acompanhado de um colega, após frequentar um seminário em uma instituição psicanalítica local, ouvi-lo dizer: “foi nesse endereço que Monsieur Lacan recebeu seus pacientes”. O tom lacônico do meu interlocutor produziu em mim um estranho efeito, contudo, na época, eu era incapaz de compreender a verdadeira significação daquele evento.
Lacan atendeu seus pacientes neste endereço, dissera o meu colega em tom lacônico. Em outras palavras, um sujeito de carne e osso recebeu pacientes em seu consultório, era isso que ele estava dizendo, evento de uma constrangedora banalidade, que parecia contrastar com a visão idealizada que eu tinha do homem Lacan. Mas, como sempre, as resistências foram rápidas no gatilho. A idealização é também um poderoso mecanismo de defesa, assim como a ideologia, que resiste à banalização do ídolo, convertendo a ordinária realidade histórica do consultório de Jacques Lacan em mero estranhamento, em um assunto menor, de menor importância.
Alguns anos antes, em análise, eu já havia começado a banalizar meus ídolos e minhas ideologias, mas, claramente, o trabalho não havia sido bem feito. Foi preciso aguardar as palavras de Leo, que em um diálogo banal sugeriu ser Freud um profeta, Viena uma Meca, e a “rota da colina, número 19” – ou Berggasse 19, endereço onde Freud recebia seus pacientes – um santuário. Um sentimento de ridículo tomou conta de mim, como se, no pé dessa colina, eu visse Moisés com as tábuas da lei, condenando o culto ao bezerro dourado. Freud, Lacan, a teoria psicanalítica e o movimento psicanalítico não eram mais do que ídolos, infames objetos de culto fetichista. Ali o patriarca implodia, esfacelava-se, e uma nova rota se abria.
A posteriori, como deve ser, fui me reconhecendo nos escombros desse mundo em colapso. De Viena, retornei a Salzburgo, onde passaria o mês de janeiro de 2015, hospedado na casa do amigo Leo. Durante esse período, tive a ocasião de visitar os locais do Instituto de Psicologia da Universität Salzburg. Por intermédio do meu anfitrião, entrei em contato com estudantes e pesquisadores da instituição. Lá, fui mais uma vez confrontado às impiedosas palavras de Leo: “vocês acreditam”, dizia ele aos colegas, “que, no Brasil, eles estudam os textos de Freud como se fossem a última palavra em matéria de psicologia?”. Já começava a me faltar estômago para aquilo tudo. Mas não adiantava tentar justificar o injustificável, pois, de fato, fazemos isso. Fazemos isso com os psicanalistas, seja ele Freud, Lacan, Ferenczi, Winnicott etc., mas também com filósofos, como Foucault, Deleuze, enfim, a lista é longa.
Retorno a Paris, um tanto mexido, algo havia mudado em mim. Uma nova forma de pensar e de sentir se impunha, o que, em termos psicanalíticos, eu chamaria, em outros tempos, de uma versão renovada de minha Liebesbedingung originária. Logo, na sequência, talvez não por acaso, entro em um fluxo de trabalho sem precedentes que resultará, três anos mais tarde, na escrita de minha tese de doutorado sobre as origens médicas do método psicanalítico. Minha ideologia psicanalítica foi desmoronando, e, com ela, os seus sólidos conceitos. A banalidade do ídolo dá lugar à banalidade da teoria, que se torna mera hipótese teórica, um constructo ao lado de outros, nem necessários nem suficientes, mas nem por isso menos importantes. Mais do que nunca, ficava evidente para mim que a teoria psicanalítica é uma Hilfskonstruktion, uma “construção auxiliar”, que pode cair, esfacelar-se, abrindo novas rotas, novos caminhos, novos horizontes para o pensamento psicanalítico.
Rebaixada à categoria de hipótese, a teoria psicanalítica deixava então o solo hiperbóreo da excepcionalidade intrínseca – como diz o colega e amigo Wilson Franco – para se misturar com os reles mortais do conhecimento ordinário.
Para muitos, essa mistura é danosa. Não se pode mesclar o ouro puro da psicanálise ao cobre das demais disciplinas. Ora, quem enche a boca para dizer isso, além de repetir algo que se repete, conhece pouco de ligas metálicas. Sabe-se que combinado ao cobre e à prata, por exemplo, o ouro se torna mais duro e resistente sem com isso perder suas propriedades. Esse que repete, conhece pouco também de história da psicanálise. O que seria, por exemplo, das tópicas freudianas sem a psicologia fisiológica de seu tempo; da noção de equação etiológica sem as teorias da hereditariedade elaboradas durante a segunda metade do século XIX; da teoria das pulsões sem o evolucionismo e a sexologia; e, por fim, do inconsciente, da transferência e das resistências, sem a clínica do hipnotismo? Poder-se-ia dizer algo semelhante em relação aos pós-freudianos.
Hoje, essa mistura se impõe convocando ainda outros saberes. Assim, perguntamo-nos, como acompanhar casos de psicose ou de neurose grave sem recorrer à farmacologia, como lidar com o autismo sem considerar a influência combinada de fatores genéticos e ambientais, como apreciar os sintomas psicopatológicos em casos de síndrome genética sem recorrer à psicologia cognitiva e do desenvolvimento? Fora da clínica, essa mestiçagem epistemológica se mostra ainda mais urgente, com a participação dos estudos de gênero, da teoria política e demais campos próprios das ciências humanas.
Tudo isso nos leva a relativizar, mais uma vez, a suposta pureza da teoria psicanalítica. Ao considerarmos a psicanálise uma ética, poderíamos, talvez, escapar à crítica. Ou será que não estaríamos apenas adiando o problema? Uma ética também lida com constructos teóricos e não pode se abster de avaliar hipóteses. É verdade que, dentro de um cenário pluralista, tais constructos devem ser julgados a partir de suas epistemologias regionais. É preciso reconhecer que essas regiões têm seus limites, mas também suas fronteiras para com outras regiões. Acredito que o trânsito entre esses diferentes territórios deva ser encorajado e não inibido por esse ou aquele regionalismo, o bairrismo de uns ou o caráter provinciano de outros.
O futuro da teoria psicanalítica depende, portanto, de um importante trabalho de diplomacia. Um trabalho que busque viabilizar o livre trânsito entre essas fronteiras. Um trabalho que torne, enfim, possível, a emergência de uma psicanálise verdadeiramente cosmopolita.