Durante a nossa vida, tomamos contato com uma série de palavras escritas. Elas chegam e nos afetam das mais distintas formas: nos ajudam a narrar e pôr alguma ordem no mundo, desembaraçam nós ou, ainda, criam outros. Evocam-nos lembranças, reflexões e sentimentos que parecem dizer mais sobre nós do que efetivamente sobre as palavras escritas. Começo assim esta reflexão, pois recentemente tive contato com uma carta, cujas palavras já havia lido algumas vezes nos últimos anos. É ela frequentemente evocada por autores que escrevem e se interessam pela educação. Dessa vez, contudo, ela afetou-me de outra forma.
Trata-se da carta escrita por Albert Camus para o seu professor primário, em 1957, quando recebeu o prêmio Nobel de Literatura. Senhor Germain, era como Camus o chamava. Nas primeiras vezes que a li, saltava-me aos olhos o grande reconhecimento endereçado por Camus ao seu mestre: “quando fiquei sabendo da notícia, meu primeiro pensamento, depois de minha mãe, foi para o senhor. Sem o senhor, sem essa mão afetuosa que se estendeu para o menininho pobre que eu era, sem seu ensinamento e seu exemplo, nada disso teria me acontecido” (Camus, 2024, p. 33).
No último contato que tive com a carta, algo havia mudado; e não era nas palavras, elas permaneciam as mesmas. As palavras escritas por Camus me afetaram de forma diferente, me fisgaram em um outro lugar. Camus afirmava que algo do seu professor primário nele ainda continuava vivo, dizia que o professor significou e continuava significando muito para ele… A ocasião do prêmio era, então, uma oportunidade para lhe dizer isso. Na carta, Camus garantia ao Sr. Germain que “seus esforços, seu trabalho e a generosidade que neles empenhava continuavam vivos num de seus pequenos escolares que, apesar da idade, não deixou de ser seu aluno reconhecido” (Camus, 2024, p. 33). O que poderia ainda insistir do encontro com aquele professor? O que o Sr. Germain lhe haveria endereçado que, mesmo passadas algumas décadas, permanecia vivo e significando? Era algo durável como um anel, transmitido de geração em geração (Benjamin, 2016).
Certamente não há respostas inequívocas a essas perguntas. Tampouco me parece possível – e mesmo profícuo – encontrar e explicitar com algum ordenamento as virtudes e atitudes do Sr. Germain capazes de explicar aquilo que ainda vivia e significava em Camus; esse procedimento possivelmente lhes causaria tamanha distorção que as tornariam irreconhecíveis. As coisas em geral não são tão fáceis de apreender e dizer como normalmente nos querem levar a acreditar, adverte Rainer Maria Rilke ao jovem poeta, “a maioria dos acontecimentos é indizível, realiza-se em um espaço que nunca uma palavra penetrou” (Rilke, 2023, p. 23).
Ainda que não pretenda forjar respostas aos questionamentos formulados, eu aqui os trago para pensarmos sobre eles. Ao pensarmos, lançamo-nos a uma atividade disposta a fazer-se e desfazer-se, tal qual a teia de Penélope: toda manhã ela desfazia aquilo que havia terminado de fazer na noite anterior (Arendt, 2019).
Para seguirmos nessa tessitura do pensamento, acrescento mais um retalho de experiência, narrada no capítulo “A Escola”, do livro inacabado de Camus “O primeiro homem”. Ele parece iluminar, com especial beleza, algo da experiência escolar vivida por Camus junto ao seu estimado professor. A aula do Sr. Germain nutria nos alunos “uma fome mais essencial à criança do que ao adulto, que é a fome da descoberta. […] Na aula do Sr. Germain, sentiam pela primeira vez que existiam e eram alvo de grande consideração: eram julgados dignos de descobrir o mundo” (Camus, 2024, p. 63-64). Vejam: os alunos sentiam que existiam e eram alvo de grande consideração. Eles eram julgados dignos de descobrir o mundo.
Trago ainda mais um fio, oriundo de outra experiência escolar. Dessa vez, narrada por Daniel Pennac em seu livro “Diário de Escola”. Em uma passagem do capítulo “Vir a ser”, Pennac nos conta sobre aquele que na escola teria sido o seu primeiro salvador. Um professor de francês já bastante idoso que o dispensou das dissertações para lhe encomendar um romance. Segundo Pennac, aquele professor teria notado sua aptidão para dar brilho às desculpas inventivas pelas lições não aprendidas e pelos deveres não feitos. A única recomendação ao romance de “assunto livre”, solicitado pelo professor, é que ele deveria ser entregue sem erros de ortografia. Pennac (2008, p. 48) que até então, à força de ouvir repetir, tinha feito para si “uma representação bastante precisa de uma vida sem futuro”, que era “uma nulidade escolar e nunca tinha sido outra coisa além disso”, via-se, naquele momento, diante de algo novo. Ainda que Pennac (2008) afirme não ter feito grandes progressos no ano em que escrevia com afinco e dedicação o seu romance, o encontro com o professor de francês marcava um antes e um depois em sua trajetória: “pela primeira vez na minha escolaridade, um professor me dava uma posição; eu existia, escolarmente falando, aos olhos de alguém, como um indivíduo que tinha uma linha a seguir e que garantia a situação no tempo” (p. 76). Um professor me dava uma posição; eu existia aos olhos de alguém.
As lembranças dos outrora jovens escolares apontam para algo que de forma semelhante teria marcado suas experiências. O endereçamento de seus professores permitia-lhes existir, supunham um sujeito em seu destinatário. Uma palavra endereçada (Lajonquière, 2014) carrega uma marca singular de pertencimento a uma tradição, a uma humanidade, tanto em seu remetente, como em seu destinatário. Nas experiências narradas, não apenas os seus professores estavam ali, se fazendo presentes enquanto representantes e responsáveis pelo mundo (Arendt, 2014), mas os destinatários de suas palavras existiam, pertenciam ao mundo e eram tidos como dignos de descobri-lo.
A palavra endereçada mira um alguém de carne e osso e não a construção imaginária de uma criança, forjada a partir de um manual pedagógico, de pré-conceitos, de critérios de avaliação estritos, de laudos e mesmo rótulos por vezes colados a elas em sua experiência escolar. Diferentemente da palavra endereçada, os enunciados formatados não têm um sujeito em seu remetente, tampouco em seu destinatário, mas visam uma criança abstrata, genérica, visam A-Criança (Lajonquière, 2008). É ela um ser natural, a-temporal e a-histórico, dotado de supostas necessidades educativas. É ela um aluno que não causa nenhum desconforto – resistência, dúvida, diferença, incompreensão ou questionamento –, pois de fato não estamos nos endereçando a um sujeito, não há endereçamento, há ninguém. Há, embutida nos enunciados formatados, uma recusa à fragilidade e à impossibilidade da educação, anunciada por Freud (1996) em sua obra.
O endereçamento de uma palavra implica sempre uma aventura, tanto àquele que a professa como àqueles que a escutam, visto que é uma experiência marcada pelo imponderável, pela imprevisibilidade de seus efeitos. A privação de semelhante endereçamento torna difícil à criança a construção de um lugar para si no discurso, um lugar desde o qual se perceba enquanto alguém digno do legado humano, um lugar desde o qual possa vir a se implicar na tarefa incessante de renovação do mundo (Fanizzi; Lajonquière, 2023).
Camus e Pennac, diante de uma palavra que lhes era endereçada desde um lugar distinto, singular, diante de uma palavra que atestava a dignidade de seus destinatários, passavam a existir, tinham finalmente uma posição, um lugar. Os pequenos escolares puderam se descolar, se deslocar e se desidentificar de um lugar de incapacidade, nulidade, indignidade. Ali, um sujeito de fato se endereçou a eles, sem o filtro da criança abstrata: eles, precisamente eles, existiam aos olhos de alguém. A educação enraíza-se no endereçamento de uma palavra a partir da qual seja possível à criança reconhecer-se enquanto digna e capaz de lançar-se à conquista “para si um lugar de palavra em uma história em curso” (Lajonquière, 2016, p. 78).
Será que como professores/as ainda nos dispomos à aventura de endereçar uma palavra a uma criança? E, ainda, será que nos colocamos à escuta do que nos endereçam as crianças – a despeito do que dizem os laudos, as avaliações, a sua trajetória prévia junto a outros/as professores/as…? É sempre preciso estarmos atentos, adverte Mannoni (1999) “ao que a criança traz quando o adulto não esperava” (p. 239).
Mais um último fio, antes de concluir. Uma notícia veiculada no mês de abril deste ano informava que o Governo de São Paulo estava implementando uma ferramenta de inteligência artificial na rede estadual de ensino para avaliar a fluência de leitura dos alunos do segundo ao quinto ano. O “Fluencímetro”, como foi batizada a ferramenta, “grava o que o aluno lê, e o áudio é analisado pela inteligência artificial. De forma instantânea o professor recebe a comparação entre o texto original e o que o aluno leu, apontando o índice de erros, a velocidade, entre outros pontos”.1
Essa notícia fez-me rememorar uma experiência que vivi há alguns anos, quando atuava como professora na educação básica, em uma turma do 3º ano do ensino fundamental. As crianças tinham em torno de sete e oito anos. No componente de Língua Portuguesa, a nota era composta por três avaliações: uma prova de gramática e interpretação de texto, uma produção escrita e uma avaliação de leitura. A correção de cada uma delas orientava-se por critérios definidos pelo grupo de professoras do 3º ano, com o intuito de que as avaliações fossem mais “equitativas” – não estou certa se seria essa a melhor palavra. Assim, na avaliação de leitura deveríamos aferir a desenvoltura das crianças na leitura oral a partir de critérios como ritmo, fluência, reconhecimento de pausas e pontuações etc. Desconheço completamente os mecanismos envolvidos em uma ferramenta de inteligência artificial, sobretudo uma como o “Fluencímetro”, mas arriscaria dizer que ela segue critérios não muito diferentes desses que mencionei.
Matheus chegou ao terceiro ano junto com algumas advertências acerca do seu “desempenho” em algumas disciplinas, dentre elas Língua Portuguesa. Pareceria ser que no segundo ano, havia enfrentado dificuldades. Ele era uma criança adorável. Divertida, cheia de amigos/as e de energia. Cultivava uma ótima relação com os/as professores/as da escola e adorava jogar futebol na hora do recreio. Mas algo parecia mudar quando estava diante das palavras. Nas primeiras atividades de leitura oral, notei que aquela situação lhe gerava certo desconforto. Saltava e tropeçava em algumas palavras, tremia e fazia um grande esforço para chegar até o fim do parágrafo. Mas não desistia, seguia até o fim, parecendo dedicar toda a sua atenção àquelas palavras escritas. Chegado o temido momento da avaliação de leitura, toda aquela situação se potencializava. Até que eu decidi tomar uma atitude. Não sabia o que dela resultaria, tampouco se seria considerada “equânime” em face dos critérios coletivamente definidos. Dei a ele a nota máxima na avaliação de leitura. Escrevi os números na folha de notas e mostrei a ele. Ele ficou estático por alguns segundos e, em seguida, abriu um sorriso que não conseguia mais fechar. Olhou para mim e voltou correndo para a sua carteira.
No dia seguinte, estava organizando a classe para mais um dia de aula. Quando olhei em direção à porta, sua mãe estava lá. A mãe do Matheus. “Professora, eu entendi o que você fez” – disse-me ela com os olhos marejados. “Ontem meu filho chegou em casa e mal podia conter sua alegria. Ele me olhou e disse: mamãe, você não sabe o que aconteceu! Eu finalmente aprendi a ler!”.
E aqui me detenho, para que fiquem sob os efeitos dessa afirmação. Creio que podem imaginar a transformação que se sucedeu após ter sido proferida por Matheus. Ele finalmente sabia ler: algo das palavras, do mundo e também de si-mesmo… Talvez sejam as narrativas de experiências como essas aqui evocadas um dos nossos mais preciosos subsídios para pensarmos sobre palavras, dignidade e educação.
Referências bibliográficas
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Tradução Mauro W. Barbosa. 2a reimpressão da 7a ed. de 2011. São Paulo: Perspectiva, 2014.
ARENDT, Hannah. A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar. Tradução Cesar Augusto R. de Almeida, Antônio Abranches e Helena Franco Martins. 8 ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.
BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: Walter Benjamin. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. 8. ed. 3ª reimpressão. São Paulo: Brasiliense, 2016.
CAMUS, Albert. Caro professor Germain: cartas e escritos. 1 ed. – Rio de Janeiro: Record, 2024.
FANIZZI, Caroline; LAJONQUIÈRE, Leandro de. A palavra docente como resposta à natalidade. ETD – Educação Temática Digital, Campinas, SP, v. 25, n. 00, p. e023049, 2023.
FREUD, Sigmund. Análise Terminável e Interminável. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Tradução de Maria Aparecida Moraes Rego. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 23.
LAJONQUIÈRE, Leandro (de). Niños extraños. En Cursiva. Revista Temática, Buenos Aires, v. 4, p. 54-60, 2008.
LAJONQUIÈRE, Leandro (de). Das contribuições da psicanálise e da formação de professores. In: ORNELLAS, Maria de Lourdes (org). Entre-linhas: Educação e Psicanálise, 2014.
LAJONQUIÈRE, Leandro (de). Notas psicanalíticas para outra história recente da infância. In: Rinaldo Voltolini (Org.). Crianças públicas, adultos privados. São Paulo: Escuta / Fapesp, 2016.
MANNONI, Maud. A criança, sua “doença” e os outros. Tradução de Monica Seincman. São Paulo: Via Lettera Editora e Livraria, 1999.
PENNAC, Daniel. Diário de escola. Tradução de Leny Werneck. Rio de Janeiro: Rocco, 2008.
RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta. Porto Alegre: L&PM, 2023.
PS: Imagem de Capa – Instalação de CHIHARU SHIOTA – Silent word, 2022. Foto de Frank Kleinbach. Disponível em: https://www.chiharu-shiota.com/silent-word
- Governo de SP vai implementar ferramenta IA para avaliar fluência de leitura de alunos; entenda. Por Marcella Lourenzetto, em 24/04/2024. Disponível em: <https://cbn.globo.com/sao-paulo/noticia/2024/04/24/governo-de-sp-vai-implementar-ferramenta-ia-para-avaliar-fluencia-de-leitura-de-alunos-entenda.ghtml> ↩︎