O que faz um psicanalista quando faz psicanálise? Essa é a pergunta persistente
sobre a clínica, a função do analista e tudo o que isso envolve que ao longo do
tempo se desdobrou em: o que são as entrevistas preliminares? O que é uma
demanda de análise? O que marca a entrada em análise? Como sei que uma
análise chegou ao fim?, dentre tantas outras. Na busca por respostas, o tripé
psicanalítico se mostrou fundamental. Nos estudos em psicanálise lacaniana, levei
muitas questões em busca de sustentação teórica. Tanto a supervisão quanto a
análise desempenharam papéis essenciais na construção de saídas diante dessa
inquietude. Foi assim que, em 2023, dei início à elaboração do que chamo de
‘esquema de uma análise’.
A construção do ‘esquema de uma análise’ visa uma elaboração mais robusta da
função do psicanalista, desmistificando ideias do senso comum e concepções que
carecem de embasamento teórico. Com esse objetivo, proponho a divisão do
processo que se dá em uma análise em diversas temáticas, considerando a
perspectiva de quem conduz o tratamento. O ponto central é estabelecer, a partir da
psicanálise lacaniana, como o analista dirige o tratamento. Deixar explícito o
referencial teórico é fundamental para nossa construção, tendo em vista as
diferentes vertentes da psicanálise e como estas determinam a direção do
tratamento de maneiras muito distintas.
Assim, avançamos para uma das perguntas fundamentais no início de um processo
analítico: qual a função das entrevistas preliminares? É neste recorte do tratamento
que vamos nos concentrar. Para isso, precisamos compreender a origem desse
procedimento, portanto, recorremos a Freud e ao seu tratamento de ensaio.
O conhecido pai da psicanálise, estabeleceu que o tratamento de ensaio consistia
nos atendimentos iniciais, com objetivos e duração específicos.
Acrescento aqui que desde então me acostumei a aceitar, de início apenas
provisoriamente, por uma a duas semanas, pacientes dos quais pouco sei.
O que se fez foi apenas uma sondagem para conhecer o caso e para
decidir se é adequado à Psicanálise. (FREUD, 1913, p. 82)
É importante lembrar que o tempo de duração do tratamento de ensaio estabelecido
por Freud, se baseia no modelo da psicanálise que ele realizava, onde os pacientes
eram atendidos diariamente, de segunda a sábado. Isso significa que o intervalo entre uma sessão e outra era muito curto. Na atualidade, realizamos atendimentos
semanais; por isso precisamos repensar se esse período inicial deveria realmente
ter uma duração temporal estipulada. Outro fator que diferencia essa técnica
freudiana daquilo que nos propomos a partir da teoria lacaniana é a concepção de
tempo lógico. A partir dessa conceituação, compreendemos que a análise possui
começo, meio e fim, e que não estão relacionados ao tempo cronológico – aquele
marcado pelo relógio – mas sim ao tempo de cada paciente, que está
intrinsecamente relacionado ao inconsciente, que é atemporal. Essa concepção de
tempo proposta por Lacan está dividida em instante de olhar, tempo para
compreender e momento de concluir.1
Essa suposição de saber é sustentada pela transferência, assim o analista é esse
que assume, enquanto semblante, a existência de um saber. É um semblante
justamente porque esse saber não existe como algo prévio ao tratamento
psicanalítico, esse saber é inconsciente e ganha contorno a partir da construção do
discurso que é realizado em análise. Por isso, a posição do analista é essa de
convocar o sujeito ao trabalho, a fala e a construção desde o início, com foco em
uma virada discursiva, que sai de uma demanda ao analista de respostas, para a
produção de uma questão sobre sua própria posição diante do outro.
Assim, podemos colocar o analista como aquele que aceita a demanda de análise,
mas não a responde, bem como também não a recusa. Então o que fazemos?
Recorrendo a Soler (2013), “a oferta [do analista] não responde, ela se coloca de
antemão, ela é a condição primordial, inaugural, e deve ser bem distinguida da
resposta. Ela é prévia à demanda que deve produzir.” (p. 16). Ou seja, convidamos
o paciente a falar, e isso está estabelecido antes mesmo de sua chegada. Esse
convite é para que ele apresente seu funcionamento narrando sua história, o que
nos fornece elementos para construção da demanda. O foco é identificar o
imperativo que pode se manifestar, por exemplo, no famoso “tenho que”, que nada
mais é do que a demanda que ele supõe que o outro o exige e que passa a reger
suas relações. Aqui poderíamos trazer à tona a máxima do desejo é desejo do
outro.
O analista inaugura a análise e o paciente aceita o convite, passando a direcionar
ao analista, a partir de construções imaginárias, respostas que o próprio paciente
construiu à pergunta: “O que meu analista quer de mim?” Os desdobramentos das
respostas aparecem no discurso do paciente de diversas formas, todas sustentadas
pela transferência. Nesse contexto, Lacan (1958) questiona a posição do analista no
atendimento dos pacientes e nas intervenções que realiza: “Essa interpretação,
quando ele a faz, é recebida como proveniente da pessoa que a transferência lhe
imputa ser. Aceitará ele beneficiar-se desse erro de pessoa?” (p. 595). Essa é uma
provocação que nos exige separar aquilo que o paciente direciona ao analista
daquilo que seria algo direcionado à pessoa que o analista é. O analista não está na
cena analítica como pessoa. Ou seja, é importante compreendermos que aquilo que
se apresenta direcionado ao analista faz parte do funcionamento do paciente em
suas relações fora da análise, repetido no processo a partir da transferência, o que
Lacan chama de “erro de pessoa”. A partir da leitura dessa repetição, o analista tem
recursos para intervir, fazer interpretações e apontamentos com foco na construção
de uma questão analítica, que se dá a partir de uma mudança de posição.
Por exemplo, um paciente que sempre relata atrasos no pagamento de suas dívidas
e dificuldades em estabelecer uma organização financeira provavelmente repetirá esse padrão durante o trabalho analítico. Enquanto isso ocorre, é fundamental que o
analista construa a possibilidade de interpretar essa atuação, convidando o paciente
a falar mais sobre seu funcionamento. Intervenções como: “Como isso se dá?”,
“Desde quando começou?” e “O que você acha desse funcionamento?” são
essenciais.
Esses movimentos de repetição acontecem nas entrevistas preliminares, e o
analista precisa estar atento ao sentido que as coisas têm para o paciente,
movimentando o discurso para a produção de uma questão sobre o próprio
funcionamento. Isso implica deslocar o paciente da “síndrome de Gabriela” – eu
nasci assim, eu cresci assim, eu sou assim – para um questionamento sobre por que
seu funcionamento ocorre dessa forma e não de outra. O “como” é uma ferramenta
preciosa do analista.
O trabalho analítico não se trata de um diálogo sustentado em réplica e tréplica,
nem se limita a uma mera interlocução. Lacan (1958), mesmo sem falar diretamente
das entrevistas preliminares, nos faz relacionar esse conceito com o que ele
chamou de “situação analítica” (p. 592), que consiste no ato do analista propor ao
sujeito a aplicação da regra analítica, ou seja, a associação livre, desde o primeiro
momento do atendimento. Lacan também nos lembra que é na comunicação inicial,
que o analista tem o papel de informar as diretrizes do tratamento, uma vez que,
verbalizadas ou não, as regras que regem o funcionamento da análise acabam
sendo colocadas.
Essa oferta do analista que abre a análise e convida para que fale livremente, sem
pensar, racionalizar ou montar um roteiro programado do que deve ser dito, é em
suma, o processo inicial de uma análise que Lacan nomeia de entrevistas
preliminares.
Cada um de vocês conhece – muitos ignoram – a insistência que faço junto
aos que me pedem conselho, sobre as entrevistas preliminares em
psicanálise. Certamente elas têm uma função essencial para análise. Não
há entrada possível em análise, sem entrevistas preliminares. (Lacan,
1971-1972, p. 27)
O fim das entrevistas preliminares é delineado pela entrada em análise, esta por sua
vez, pode ser demarcada a partir do convite, do analista, para que o paciente se
deite no divã, mas precisamos compreender teoricamente como isso se dá. Não se
trata do móvel em primeira instância. O que podemos adiantar que tem relação
direta com essa virada que falamos anteriormente, é o giro entre a posição de quem
se queixa e demanda do outro amor, reconhecimento, solução, para a posição
daquele que se questiona do próprio funcionamento e trabalha em torno disso.
Nesse processo, bem como em todo o tratamento psicanalítico, não há nada de
misterioso, pelo contrário, a partir da teoria compreendemos sua função e na prática
clínica aplicamos a técnica. As entrevistas preliminares são fundamentais para o
andamento do tratamento, esse momento engloba muito do que falamos sobre o
analista ser paciente, ter calma e escutar o funcionamento de cada analisante, para
assim poder modular o tom de suas intervenções, conseguir compreender que é
preciso elementos para fazer interpretações, que antes de interpretar é preciso
escutar e que diante da pressa, ou da exigência de resolver o problema que está
sendo apresentado pelo paciente, corre sérios riscos de ser violento, invasivo,
praticando uma psicanálise selvagem e encerrando uma análise precocemente.
É importante lembrar que a entrada em análise até pode ser considerada um marco
no tratamento psicanalítico, mas as entrevistas preliminares também fazem parte
desse processo e sem uma não há a outra. O fato de o paciente ainda não ter
entrado em análise não significa que não há análise em andamento; isso precisa
ficar bem claro.
Concluímos, portanto, que as entrevistas preliminares marcam o início do trabalho
analítico. Nesse momento o analista recolhe elementos para dirigir o tratamento,
mesmo já estando conduzindo-o. Por isso, é essencial que o analista seja paciente
com o tempo de cada pessoa que o procura, reconhecendo que não há tempo
definido ou quantidade de sessões estabelecidas para o começo, meio e fim das
entrevistas preliminares. O trabalho do analista envolve a palavra, a linguagem e o
discurso, e não a solução dos supostos problemas que aparecem direcionados a ele
devido a seu lugar na transferência. A condução das entrevistas preliminares tem
como objetivo principal a virada discursiva, que não precisa ser hollywoodiana,
pode, inclusive, ser bastante sutil. Essa virada se dá através da condução do
analista na busca de escutar “como” o sentido das coisas se estabeleceu dessa
forma para esse paciente.
Assim sendo podemos avançar na nossa produção do esquema de uma análise,
com uma nova questão: como sei que o paciente fez a virada discursiva?
Referências
FREUD, Sigmund. O início do tratamento, 1913. In: . Fundamentos da clínica psicanalítica. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017. (Obras incompletas de Sigmund Freud; Edição: 1). p. 82-101. LACAN, Jacques. O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada – um novo sofisma, 1945. In: . Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. p.
197-213.
LACAN, Jacques. Variantes do tratamento-padrão, 1955. In: . Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. p. 325-364. LACAN, Jacques. A direção do tratamento e os princípios de seu poder, 1958. In: . Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. p. 591-652.
LACAN, Jacques. O saber do Psicanalista, Lição II, Seminário inédito, 1972-1972.
Recife: Centro de Estudos Freudianos de Recife, 2000.
SOLER, Colette. A oferta, a demanda e… a resposta. Stylus Revista de Psicanálise,
Rio de Janeiro, n. 26, p. 15-32, 2013.
- 1LACAN, Jacques. O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada – um novo sofisma, 1945. In:
__. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. p. 197-213. ↩︎