Há milhares de anos, mulheres, homens e crianças se viram obrigados, e até mesmo instigados, a saírem de um lugar para o outro em busca de comida e segurança. As adversidades climáticas, físicas e sociais nunca foram empecilhos para o deslocamento dos seres humanos movidos por necessidades básicas como comer, dormir, trepar e se proteger. Alguns até poderiam dizer: odiar. Apesar de todo medo e todo risco que corriam, era a sobrevivência de si, dos filhos e, em última instância, da espécie que estava em jogo. Tudo isso somado ditava o ritmo das caminhadas empreendidas por nossos ancestrais.
Sou curioso desse tipo de assunto. Fico me perguntando: para onde iam? Buscavam qualquer tipo de alimento ou imaginavam encontrar algo mais específico? Fugiam de predadores ou esperavam encontrar abrigos seguros em novos lugares? Quais os critérios na hora de decidir a direção que o grupo tomaria? O mais velho decidiria com a sua sabedoria e o grupo acataria ou os mais jovens e mais fortes tomariam a dianteira e todos os seguiriam? Talvez essas questões sejam triviais, mas me movem o pensamento.
Sabemos que não havia cidades naquela época, pois só começariam a se constituir dezenas de milhares de anos depois, naquilo que se convencionou a chamar de revolução agrícola, momento em que nossos ancestrais passariam a “dominar a natureza”, e, em alguma medida também, passaram a ser dominados por “ela”. Nessa perspectiva, poderíamos imaginar que esses hominídeos se encontrariam em seus deslocamentos territoriais, ou seja, grupos diferentes buscando por coisas similares se cruzariam. O que teria acontecido em encontros como esses? Provavelmente, toda a sorte de coisas, desde brigas, sexo, permutas de objetos até assassinatos, mas, sobretudo, ou o que me interessa dizer aqui, a troca de ideias. Ao custo de muito ódio e amor, dor e prazer, as palavras e as ideias foram trocadas de maneira intensa, provocando efeitos diversos em cada um dos seres de nossa espécie. Isso teria permitido a criação de um mundo, o qual, no entanto, não se resume a sua extensão territorial, embora tenha precisado desta para existir.
Após o nascimento das cidades, as pessoas passaram a habitar o mesmo lugar por mais tempo ou até por uma vida toda. Gerações se estabeleceram em torno de cidades, mulheres e homens desempenharam novas funções; e, as vidas, por sua vez, ganharam novos sentidos. No entanto, nem todos faziam isso, pois havia grupos que continuavam a se deslocar por caminhos desconhecidos ou mesmo impensados. É possível que retornassem aos pontos de partida, mas nunca do mesmo jeito, visto que haviam sido transformados pelo que viram, por quem encontravam, por outras ideias.
Imagine comigo uma cena, ou melhor, deixe-me fazer uma espécie de brainstorming e construa a cena comigo. Imagine dois personagens. Um seria alguém estabelecido num determinado lugar, construiu a sua casa, dedicou a vida a retirar da terra e dos animais o seu sustento e da família, criou laços com os vizinhos do grupo que ali também habitavam, e esperava que ninguém viesse lhe saquear ou fazer qualquer tipo de mal. Imaginou esse personagem? Agora, imagine o segundo personagem, alguém que sempre esteve em movimento constante, que improvisava onde dormir com os seus, que tirava o sustento da diversidade daquilo que surgisse no caminho, com prontidão para aprender, pois o acaso era o seu vizinho, além de planejar contando com o elemento surpresa.
Voltemos à cena. O briefing é: personagem 1 encontra com personagem 2 numa situação comum a ambos, embora sob perspectivas diferentes. Que situação poderia ser essa? Poderíamos pensar numa situação comercial, não é? Pois, no final das contas, é uma situação de troca. Mas o que trocariam? Continuemos nessa lluvia de ideas. Os personagens poderiam trocar alimento por utensílios de trabalho, como, por exemplo, uma porção de grão de trigo por uma faca ou uma quantidade razoável de frutas por couro de animais que serviria como casacos ou, ainda, galões de leite por bebidas vindas de outras partes do mundo. Antes desse encontro acontecer, é possível que tenha ocorrido outros e a equivalência das coisas trocadas teria sido uma questão de disputa. Ora, um produto que tem um valor para o personagem 1 pode não ter o mesmo valor para o personagem 2. Leite, por exemplo, para o personagem 1 é de suma importância já que ele alimenta, protege e retira o produto do animal. Assim, ele tem um gasto de tempo e de outros produtos com potenciais de troca que são investidos no animal, criando um ambiente minimamente estável para a produção de um bom leite.
Então, como quantificar os produtos? Isso nos daria muito trabalho para explicar aqui. Vamos resumir. Talvez seja melhor pensarmos na moeda, no dinheiro que, embora seja uma ficção, dá suporte à realidade. Até hoje, diríamos. Sim, o dinheiro é uma abstração, apesar de encontrarmos a sua materialidade em metais ou em papéis. Os bitcoins, seguindo esse raciocínio, seriam a expressão contemporânea, dessa realidade ficcional, pois sua operação se efetiva por intermédio de dados, seguindo a estrutura simbólica herdada.
Há alguns anos, um filósofo marxista-leninista propôs que todos nós tirássemos o nosso dinheiro dos bancos. “Nosso dinheiro”, que complicado, né? Tudo bem, continuemos. Isso seria impossível, dizia ele, pois, em poucos minutos, não haveria cédulas nem moedas, nem mesmo barras de ouro para contemplar todos os solicitantes. O filósofo acreditava que haveria uma falência, um colapso total dos bancos, e o caos se iniciaria. De fato, o caos se iniciaria, mas não pelo fim da materialidade das cédulas. É bem plausível que ele estivesse tirado essa inspiração do personagem Tyler Durden, protagonista do filme Clube da Luta (Fight Club, 1999), que propunha explodirem todos os prédios onde estivessem os computadores – as bases físicas – com todas as informações dos cartões de crédito, cujo resultado seria a absolvição da dívida das pessoas comuns com os bancos, por intermédio de seu ato..
Quem sabe o filósofo tivesse sido um pouco ingênuo? Quem sabe Tyler fosse um romântico incurável? (Romântico no sentido torto do termo). Talvez a questão não fosse como eliminar a dívida com os bancos, mas como pagar a dívida simbólica? Isso é pura ficção, e ficção não é contrário a realidade. Não à toa, Freud chamava a fantasia de realidade psíquica. O nome não é bom, mas já acena com as coordenadas do campo aberto pelo velho de Viena.
Laisse tomber, deixo momentaneamente as especulações econômico-filosóficas.
Voltemos à cena. Imagine o encontro dos dois personagens. Que língua falam? Bom, se estivermos pensando num tempo arcaico talvez não falem a mesma língua, pois um habita um determinado território e o outro transita por vários lugares. Na verdade, é provável que ainda nem tenham se instituído as línguas e falem dialetos diferentes. No entanto, conseguem certa comunicação por meio de sons ou gestos. Para a cena em construção, já é suficiente. Se você já foi a algum país em que os nativos não falem a sua língua materna e você não fale a deles (e ninguém fale uma segunda língua em comum), talvez você já tenha vivenciado uma experiência similar. Quem sabe num restaurante, numa padaria ou farmácia. Imagine, você precisa de algo e pede. Você emite sons, fala as palavras e as frases que conhece da sua própria língua e, por alguma razão, acredita que a outra pessoa possa compreender. Faz gestos no anseio de que o seu pedido seja atendido. O outro, por sua vez, escuta e no afã de se fazer compreender emite sons e também faz gestos, pensando que aqueles movimentos serão suficientes para comunicar. Na maioria das vezes, ambos alcançam parte de seus objetivos, como, por exemplo, a compra de um remédio. Porém, isso não significa que comunicaram tudo o que quiseram, falaram ou mesmo tudo o que gesticularam. Sempre há algo de incomunicável. Mas, quando falamos a mesma língua e usamos os mesmos gestos também não há sempre um tanto que não conseguimos comunicar?
Ainda neste levantamento de ideias, é curioso pensar que mesmo falando a mesma língua, parece haver algo que permite as trocas. A esse algo poderíamos chamar provisoriamente de realidade. Mas que realidade? Essa pergunta me coloca numa direção, numa decisão. O que eu quero dizer é que não me interessa pensar numa realidade dada, algo estabelecido desde sempre (o que de alguma maneira é uma invenção). Mas me interessaria mais pensar em algo que é forjado a partir das ficções coletivas, dos empreendimentos em que nos embrenhamos para criar um mundo.
Não percamos o foco! Estamos construindo uma cena. Portanto, tomemos a realidade por uma construção feita a partir das ficções, as quais nos permitem conviver, amar, trabalhar, lutar, odiar etc. Neste sentido, saber ler a realidade é saber ler as ficções que nós, humanos, produzimos historicamente e que nos fez organizar as trocas e os trabalhos durante esses últimos milhares de anos. Se pudermos lê-las, então, poderemos intervir de maneira a ressignificar a história. Ora, construir uma cena é, antes de tudo, possibilitar as aberturas e as trocas, os silêncios e as rupturas, é criar o tecido da realidade, é dar outro sentido para aquilo que não tem mais sentido de ser ou que faz sofrer. Isso, não fazemos sozinhos.
Pois então, voltemos à cena. Ou melhor, a outra cena.
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