ENSINAR NO DESCONHECIDO: RETRATOS DAS TRANSFORMAÇÕES DA PRÁTICA DOCENTE NO CONTEXTO DA COVID-19 – Cosmopolita
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ENSINAR NO DESCONHECIDO: RETRATOS DAS TRANSFORMAÇÕES DA PRÁTICA DOCENTE NO CONTEXTO DA COVID-19

No período de vigência de medidas de contenção da disseminação do
coronavírus no Brasil, em março de 2020, até, pelo menos, meados de 2022,
diferentes conduções foram realizadas no campo da educação, na tentativa de
atender às orientações sanitárias e, ao mesmo tempo, preservar de alguma maneira
a possibilidade de desenvolvimento de atividades didático-pedagógicas. Pacotes de
atividades impressas, aulas gravadas em vídeos, transmissões pelo rádio e
televisão, encontros virtuais online, orientações de estudo por telefone e troca de
mensagens por aplicativos foram alguns dos recursos utilizados pelas professoras1
no período de suspensão das atividades presenciais, que se intercalaram, em certos
momentos, com tentativas de retorno.
Desta forma, o uso intensivo das novas tecnologias de informação e
comunicação devido ao cenário pandêmico, trouxeram muitas implicações nas
formas como se configura a dinâmica ensino-aprendizagem, pois exigiu adaptação e
reestruturação das atividades educacionais e do próprio trabalho docente. As
professoras, como agentes fundamentais no processo ensino-aprendizagem, de
uma semana para outra, se viram obrigados a se reinventar, adaptar-se à realidade
das aulas online, pois essa modalidade de ensino, requer planejamento, prévia
organização e principalmente disponibilização de capacitação docente para lidar
com o uso da tecnologia da informação e comunicação, bem como, se atentar às
necessidades dos alunos, que na sua grande maioria eram desprovidos de recursos
digitais para o acesso aos conteúdos educacionais.
Sem contar que estes mesmos professores se depararam com a
necessidade de remanejar suas tarefas cotidianas, lidar com as demandas pessoais
e ainda se defrontar com seus próprios medos e incertezas perante o novo vírus,
situação esta que não altera somente a rotina, mas é causadora de adoecimento
psíquico. Condição que rememora ao fato de que o professor não é exclusivamente
agente de ensino, é também um sujeito atravessado por uma subjetividade que lhe
é própria.
Ao longo de todo o período vivenciado, prevaleceu o caráter de
imprevisibilidade e urgência, no qual a tomada de decisões ocorreu sem grande
planejamento ou análise, a partir das mudanças no cenário nacional e internacional
pandêmico. Professoras, estudantes e familiares foram se adaptando a condições
que pareciam provisórias, mas que perduraram por mais de dois anos.
Pesquisadores da área já buscavam, desde o início da pandemia, mapear
iniciativas, dialogar com professoras e escutar suas narrativas, de modo a melhor
compreender os limites, as possibilidades e os desafios da docência em meio a
tantos entraves, que se somaram a outras dificuldades não tão novas e nem um pouco inéditas, decorrentes do cenário de crise política e institucional, bem como da
crescente e enfática desvalorização da profissão docente.

Toda essa conjuntura imposta no período da pandemia, as suas
consequentes transformações sociais e as exigências e as mudanças nas formas de
configuração do trabalho docente, leva-nos à reflexão sobre como docentes lidaram,
forçosamente, com a mudança do ensino presencial para o ensino remoto
emergencial, não somente no contexto da pandemia da covid-19, mas também no
pós pandemia, considerando aspectos da formação e da prática docente trazidos
nos enunciados de algumas professoras2.
A escolha por tratar da classe de professoras é intencional e política. Em um
momento em que autoridades e profissionais das mais diversas áreas pareciam ter
algo a dizer sobre a educação, a própria classe docente era pouco escutada. Os
discursos das docentes são reveladores de contextos que só eram conhecidos por
elas, por estarem imersas na realidade. Por suas palavras, enxergamos e podemos
tecer reflexões sobre a formação docente.
Digo isso porque compreendo que os sujeitos se constituem na linguagem e
a produzem nas práticas que os constituem, tal como defendido por Vigotski (2010).
Além disso, em perspectiva discursiva (Bakhtin, 2006; Volóchinov, 2017), os
enunciados não são indiferentes, ou mesmo independentes, entre si, são parte de
uma história, de uma organização social, de um grupo, dentro dos quais se
encontram/confrontam ideologias, classes sociais e visões de mundo. Nessa
abordagem, a linguagem é concebida para além de sua estrutura envolvendo regras
ortográficas e gramaticais, levando em conta a construção social que sustenta os
discursos. Assim, ao voltarmo-nos para as narrativas das professoras, as
compreendemos nesse continuum de enunciados, que refletem e refratam o sentir e
o fazer de um coletivo na pandemia.
Para acessar o vivido pelas docentes, foi realizado uma pesquisa narrativa3,
a qual, além de possibilitar a escuta de suas vivências, permitiu que os sentidos
construídos sobre sua profissão e sua prática em um contexto singular fossem
acessados. Em consonância com o referencial histórico-cultural e a perspectiva
enunciativo-discursiva4, dialoguei com os enunciados das docentes compreendidos
como social, cultural e historicamente construídos, atravessados por outros
discursos e constituídos na relação com os outros.

Compreende-se que as professoras expressaram estranhamento em relação
às suas próprias práticas e denunciaram as limitações dadas pela falta de recursos
e amparo institucional. Ao mesmo tempo, foram se (trans)formando por meio das
experiências vivenciadas no contexto pandêmico e registraram que se sentiram
desafiadas a buscar alternativas para possibilitar minimamente o aprendizado dos
estudantes, oferecendo resistência à naturalização do ensino remoto e reafirmando
a potência das relações interpessoais para a formação e do chão da escola como
espaço diverso e humanizador. Ademais, as lições trazidas pelos discursos dessas
professoras nos possibilitaram tecer considerações acerca daquilo que, apesar de
narrado de modo pessoal, é comum à experiência de muitas e, por isso, convida a
pensar a docência e seus entraves para além do momento pandêmico.


Entre desafios e resistências


As professoras apontam para diferentes dimensões da prática pedagógica
que foram significativamente alteradas com a migração para o ensino remoto
emergencial: o modo de expressar afeto e direcionar cuidados aos estudantes; a
aula como experiência formativa integral; a noção de presença e ausência; os usos
da linguagem e seus diferentes suportes; o desenvolvimento físico e motor atrelado
ao psicológico e intelectual; as noções de temporalidade e espacialidade.
Também anunciam entraves nem um pouco novos, mas já incorporados com
certa – e problemática – naturalidade no cotidiano docente, que se intensificaram no
momento pandêmico: tensões na relação com as crianças e seus familiares;
escassez de espaços de diálogo e formação; falta de infraestrutura e recursos para
o desenvolvimento do trabalho pedagógico; pouco apoio da direção e coordenação;
orientações curriculares prescritivas e tarefeiras; falta de coleguismo e trabalho
coletivo
Acerca de todos esses aspectos, observa-se que ora as professoras
manifestaram desânimo ou pouca força para pensar em alternativas e reivindicar
melhores condições de trabalho, ora expressaram esperança e acenaram com
possibilidades de mudança. A partir dessa compreensão, as professoras foram se
(trans)formando no contexto pandêmico, conforme suas narrativas, entre desafios e
resistências.
As professoras falam da falta de infraestrutura e preparo para o uso de
recursos tecnológicos, associada à expectativa de uma performance caricata, nelas
depositada. Em meio às tentativas, observamos uma prática e um sentido de
formação ligados à sobrevivência, a uma formação aligeirada, solitária e pragmática
e uma autorresponsabilização por colocar os processos de ensino e de
aprendizagem em andamento acessível aos estudantes.
Em seus discursos, as docentes sentem profundamente a ausência dos
estudantes e protestam contra a falta de amparo formativo e de condições de
trabalho, desvelando como a docência foi ainda mais romantizada e, com isso,
desqualificada em sua profissionalidade no período de ensino remoto emergencial.
As professoras destacaram ainda que as exigências a elas impostas extrapolavam
sua carga horária e interferiam em suas tarefas cotidianas, sem considerar que elas
mesmas também precisavam lidar com as demandas pessoais e se defrontar com
seus próprios medos e incertezas perante o novo vírus.
Contudo, enunciados anunciam atos de resistência na docência, que nos
convidam a pensar a formação permanente para além do período pandêmico.
Diante das situações adversas que frequentemente assolam a profissão docente,
consideramos a persistência das professoras ao realizar a defesa de princípios
orientadores do trabalho pedagógico, a busca por informações e apoio, assim como
o estabelecimento de interlocução e o fortalecimento de coletivos de trabalho. São
ações que caracterizamos como resistência a uma lógica hegemônica que
desencoraja e cansa.
Diante de um cenário que apresentou-se de forma tão atípica e incerta, em
contrapartida aos muitos entraves por elas denunciados, as professoras narram o
trabalho possível. Nele, enxergamos a insistência na realização da prática docente –
na possibilidade de aprender com o vivido e ampliar seu campo de desenvolvimento
e aprendizado –, a atenção ao outro, às emoções dos alunos, ao acolhimento, e a
disposição em aprender e compartilhar o conhecimento, bem como a busca de
formação e a atitude investigativa e criativa para promover o ensino e a
aprendizagem.
Por fim, este texto busca destacar que a pandemia tem nos deixado
oportunidades para identificar e nomear os limites, fragilidades, possibilidades e
potencialidades da prática docente em tempos incertos ou diante de contextos
desconhecidos. Ao trazer reflexões acerca dos modos de ser docente atrelado a
palavra ressignificações, tive o objetivo de abordar as mudanças nos modos de ser
docente diante do cenário educacional na atualidade que constituem a práxis
educacional, relacionando o uso de ambientes virtuais e o trabalho docente, a forma
como as professoras estão lidando com realidades, diferentes épocas, diferentes
contextos, diferentes situações, a internet, que nos conduzem para mudanças na
escrita, na leitura, nas relações, que provocam mudanças de si mesmo e de sua
prática. É preciso reconhecer que crise sanitária nos deixou mais do que lições, ela
nos deixa questionamentos. Os atuais dilemas evidenciam metamorfoses na prática
docente, não só o contexto do pós-pandemia, mas transformações que nos ajudam
a repensar essa prática diante dos desafios que há muito tempo estão presentes.
Portanto, podemos dizer que o resultado da boa qualidade do ensino, em especial
da educação pública, tem uma ligação direta de como o trabalho docente possibilita
o alcance dos seus objetivos e ao mesmo tempo cria métodos de inclusão e acesso,
ou seja, que conduza esse ensino a todos os seus alunos de forma que se
apropriem dos conhecimentos historicamente construídos pela humanidade. No
entanto, é preciso oferecer condições para que esses muitos professores e
professoras desenvolvem seu trabalho com dignidade, para tanto é necessário
compreender os tempos passados e atuais para buscar, de forma implicada e
coletiva, caminhos para pensar o futuro da humanidade no pós pandemia e na atual
realidade.

  1. Faço referência ao coletivo de docentes no feminino, entendendo que as mulheres são maioriano exercício da docência nos anos iniciais do Ensino Fundamental. ↩︎
  2. Este texto é um recorte de um artigo produzido com base em uma pesquisa de dissertação deMestrado. O titulo do artigo é Prática e formação docente: desafios e resistências no contexto dacovid-19. Disponível: Revista Educação em Questão, Natal, v. 62, n. 71, p. 1-23, e-35617 jan./mar.2024 ↩︎
  3. A pesquisa, a qual o presente texto faz referência, foi realizada com base em um estudo narrativo,que se desenvolveu a partir da produção e da análise de narrativas pedagógicas, escritas e orais, deprofessoras atuantes nos anos iniciais do Ensino Fundamental da Rede Municipal de Educação deduas cidades do interior de São Paulo. As seis docentes participantes do estudo produziram relatosque versaram sobre como estavam vivenciando o ensino remoto emergencial. ↩︎
  4. A fundamentação teórica para a construção das análises foi ancorada nas perspectivas
    histórico-cultural (Vigotski, 2000, 2007, 2010) e enunciativo-discursiva (Bakhtin, 2006, 2010;Volóchinov, 2017). ↩︎

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